Seminário Catrapovos debate desafios na aquisição da alimentação escolar de povos tradicionais

Atividade reuniu representantes do poder público e sociedade civil de todas as regiões do país para debater a execução das diretrizes do PNAE voltadas aos povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas e tradicionais

6 de março de 2023 | Notícias

Por Yuri Simeon / Do Observatório da Alimentação Escolar

Com a presença de mais de 70 representações de todo o Brasil da sociedade civil organizada, dos ministérios públicos, da Defensoria Pública e dos poderes executivo e legislativo em âmbitos federal, estaduais e municipais, o debate sobre experiências, dificuldades, soluções e boas práticas permeou o Seminário “Avanços e desafios de comissões estaduais da Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil e sociedade civil para a execução de políticas públicas de aquisição de alimentos de povos indígenas e comunidades tradicionais/PCTs”, realizado na quinta-feira (02) de forma virtual.

Todas as falas realizadas no seminário reafirmaram a importância da Catrapovos, como também a necessidade de que a prioridade das compras públicas para o PNAE, junto a povos indígenas e comunidades tradicionais, prevista em lei, seja assegurada.. É o que apona na fala de abertura Fernando Soave, Procurador da República e coordenador da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa) e da Catrapovos Brasil.

Segundo Soave, “em níveis municipais, estaduais e federal há legitimidade e necessidade de se incidir nesta pauta, envolvendo várias áreas, até mesmo a ambiental. E já há muito que está na lei, como a compra mínima de 30% da agricultura familiar, de povos indígenas e quilombolas, e a alimentação adequada para povos indígenas. Então, está na lei, precisamos garantir esse cumprimento”.

História da Catrapovos

Em um primeiro momento do seminário foi descrita a origem da criação da Catrapovos, instituída em 2021 pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ª CCR) de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal, que se baseou na experiência da Catrapoa. “A Cataproa surge em 2016 com uma visita ao povo Yanomami”, relata Fernando.

A Catrapoa (Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas) é resultado da articulação entre instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos e lideranças indígenas, de comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas, quilombolas e de comunidades ribeirinhas, extrativistas e caiçaras.

Essas comissões pretendem garantir o cumprimento da lei que prevê a aquisição de, no mínimo, 30% de produtos alimentícios da agricultura familiar – de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e tradicionais -, além do direito de povos indígenas e comunidades tradicionais à alimentação escolar adequada aos seus processos próprios de produção e à sua cultura – a partir da aquisição local de alimentos.

Para essa apresentação se usou um vídeo que ilustra o papel do PNAE voltado aos povos e comunidades tradicionais, aos quais a Catrapovos serve como espaço de fomento, monitoramento, reivindicação e implementação.

Avanços e desafios atuais

Apontado como um processo recente, a implementação do PNAE para povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais começou a ter exemplos práticos há poucos anos. Como destacado no seminário, o primeiro edital para aquisição de alimentos de povos indígenas no Amazonas é de 2018, dois anos após o início da criação da Catrapoa. Passados seis anos, hoje é possível afirmar que os povos indígenas do Amazonas estão produzindo alimentos, de maneira regular, para a alimentação escolar.

Isto representa um grande avanço, visto que, como relatado no seminário, há seis anos atrás as mães indígenas “reclamavam que não vinha alimentação escolar. Fomos olhar, vinha charque, carne enlatada, tendo o peixe fresco ali do lado”, explica Soave. Ele ainda aponta a grande contradição financeira em comprar alimentos “de fora” para esses povos que vivem em locais distantes de grandes centros urbanos. “Eram R$ 100 mil [de verba] para a alimentação escolar, mas se gastava R$ 50 mil em frete”.

Como exemplo da necessidade de se avançar ainda mais, um participante do seminário mencionou que recentemente, em meio ao processo emergencial de auxílio federal à situação de calamidade do povo Yanomami – vítima do avanço do garimpo na terra indígena que se distribui entre Roraima e Amazonas – é “comum ver latas de sardinha espalhadas pelo mato, quando se tem abundância de peixes naquela região [do país]”. Outro participante, de Roraima, complementa: “foi lá na região de Surucucu e ‘tá’ cheia de lata de sardinha no chão. É claro que é uma medida emergencial, mas temos que pensar em soluções de médio e longo prazo”.

Outro desafio é o acesso dos povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais aos mecanismos de inscrição nessas políticas públicas, como o preenchimento de formulários feitos pela internet. É o que relata Clenia Bernardelli, nutricionista técnica do PNAE.

“Eu já fiz muita inscrição para produtor indígena que não conseguia fazer pela internet. Eles, às vezes, precisam de mais de um dia de energia solar para usar poucos minutos de internet. Mas não consigo fazer para todos”.

Clenia destaca os desafios para a emissão do CAF (Cadastro Nacional da Agricultura Familiar) com produtores indígenas, que exige um procedimento junto à FUNAI. Vários participantes do seminário mencionam as dificuldades relacionadas ao acesso ao DAP/CAF, especialmente durante o governo Bolsonaro. Ela finaliza enfatizando a necessidade do “FNDE fazer um curso específico da alimentação indígena e ribeirinha”.

Apontando possíveis caminhos neste sentido, Pedro Vasconcelos, representante da FIAN Brasil, afirma ser necessário “que essa mesa de diálogo possa levar também esse debate das dificuldades dos povos tradicionais, que são particulares. Ter um guia melhor estruturado sobre essa questão é essencial”.

Apesar dos muitos desafios apresentados, as falas também demonstraram otimismo diante das melhores condições para o avanço dessas políticas públicas. Como destaca Frederico Viellas, do ISA (Instituto Socioambiental), “estamos em um novo momento, com novos governos, onde temos mais condições de retomar essa pauta. E devemos aproximar esses novos gestores para uma sensibilização dessa construção”.

Experiências no estados

Ao menos 14 experiências da Catrapovos nos estados – em maior ou menor nível de consolidação – foram representadas no seminário, como: Acre, Amapá, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, São Paulo e Tocantins.

As experiências são diversas, na região Norte do país há comissões estabelecidas há mais tempo e com mais experiências na abertura de editais para aquisição de alimentos de comunidades tradicionais, enquanto nas demais regiões do país estão em processo de consolidação.

Em Roraima existe um grupo que se reúne desde 2021. Após 12 reuniões aconteceu a primeira aquisição de alimentos de produtores de comunidades tradicionais, em um edital no valor de R$12 milhões. “Foi uma primeira experiência que abre o precedente para as próximas, muito importante para os municípios”, explica o integrante da Catrapovos no estado.

Ainda segundo ele, “há bastante dificuldade em levar a Catrapovos até o povo Yanomami. Primeiro há a presença do garimpo, mas também há a necessidade de fazer as escolas indígenas funcionarem”. Como experiência positiva relata a realização de visitas e mutirões para preparar a população indígena para a inserção na Catrapovos.

O Acre apresenta uma experiência bastante otimista. A perspectiva da Catrapovos de lá é ter uma atuação em 12 municípios, dos 22 do estado, até o final de 2023. Ao todo o Acre possui 147 escolas indígenas.

A representante da Catrapovos em Tocantins destaca a necessidade de processos formativos. No Pará, o que se relata é que as diversas realidades de quilombolas, indígenas e ribeirinhos distribuídos em 144 municípios tornam grande o desafio de utilizar um mesmo método de atuação.

No Amapá o processo está em estágio inicial. A primeira reunião da Catrapovos foi em novembro de 2022, porém já na primeira reunião deste ano foi realizado um levantamento das escolas estaduais, com a contribuição do MPF. Ainda não foi realizada nenhuma chamada pública para a aquisição de alimentos de povos tradicionais, mas se constatou que dos municípios do estado, apenas três fazem chamadas públicas, os demais estão inadimplentes há bastante tempo. A perspectiva é que a Catrapovos consiga fazer uma primeira chamada pública no estado ainda este ano.

Da região Nordeste, Pernambuco apresenta uma experiência que reúne comunidades tradicionais, quilombolas e de pescadores para a compra direta de pescado, atendendo 15 unidades educacionais, que somam mais de 5 mil estudantes, com a perspectiva de expansão. Um grupo de WhatsApp com representantes de comunidades quilombolas, de pescadores e indígenas é utilizado para facilitar a comunicação entre os diversos sujeitos produtores de alimentos. Na Bahia a experiência é ainda inicial.

O relato da experiência no Mato Grosso destacou a atuação conjunta entre sociedade civil organizada e Ministério Público Federal – um relato que se repete em muitos estados. Porém em alguns casos foram descritos processos inversos, onde há a dificuldade de inserir o MPF na construção da Catrapovos.

Em São Paulo a atuação da Catrapovos é regionalizada, com foco no Vale do Ribeira e voltada, principalmente, para a articulação com comunidades quilombolas que já produzem para a alimentação escolar local há pelo menos uma década.

No estado de Minas Gerais a reunião de lançamento da Catrapovos ocorreu na sexta-feira (03). O estado já possui um longo histórico de hortas comunitárias urbanas e DAP’s urbanas (Declaração de Aptidão ao Pronaf).

E no Rio Grande do Sul acontece um seminário no dia 22 de março, marcado com objetivo de aprofundar o histórico das experiências da aquisição de alimentos de comunidades tradicionais.

Próximos passos

O seminário se encerra apontando perspectivas futuras, que incluem uma reunião nacional no próximo mês com uma abordagem mais técnica/específica em torno do tema. Há também a intenção de construir processos formativos nacionais on-line, além de seguir fomentando a criação de mecanismos para avançar no diálogo e pressão com o poder público – onde foi cogitada até mesmo a possibilidade futura da criação de um ranking das prefeituras mais comprometidas com a alimentação escolar indígena e tradicional.

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