Por Yuri Simeon
Do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
O Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) realizará um Webinar de lançamento do “Dossiê ÓAÊ 2023/2024 – Diversidades e desigualdades na alimentação escolar” na próxima segunda-feira (29), a partir das 18 horas (horário de Brasília). O lançamento será on-line, reunindo autoras da publicação para um debate com transmissão pelo YouTube e aberto para participações.
O Dossiê ÓAÊ contém 10 artigos e duas entrevistas com membros das organizações e movimentos integrantes do Comitê Consultivo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de outras pessoas e grupos comprometidos com a defesa do programa.
O lançamento terá a participação das autoras Fernanda Mainier Hack, Ivanira Amaral Dias, Rute Ramos da Silva Costa, Vanessa Schottz e mediação de Mariana Santarelli, coordenadora do ÓAÊ.
“Essa nova publicação do ÓAÊ vai de encontro ao nosso objetivo de ampliar as escutas e narrativas sobre o PNAE. Pretendemos abordar as fragilidades existentes na execução do programa, apontar mecanismos que vem sendo continuamente construídos para apoiar processos que vão de encontro a sua adequada execução, reforçando e trazendo maior atenção ao que está previsto em lei”, explica Luana de Lima Cunha, assessora executiva e de pesquisa do ÓAÊ.
A publicação inaugura uma nova série bianual desenvolvida pelo ÓAÊ, apresentando com profundidade debates pertinentes para a implementação e o aperfeiçoamento das diretrizes do PNAE.
Necessidades alimentares especiais no PNAE
A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) determina que a promoção de uma alimentação adequada e saudável deve estar de acordo com as necessidades alimentares especiais (NAE), com as fases da vida, de fatores culturais e de dimensões de gênero, raça e etnia.
O PNAE deve atender essas necessidades alimentares especiais, com a elaboração de cardápios especiais por nutricionistas responsáveis pela alimentação escolar nos territórios, destaca Fernanda Mainier Hack. Ela é advogada especialista em Direitos Humanos, membro do núcleo gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, co-fundadora dos movimentos Põe no Rótulo e Alergia Alimentar Brasil.
Fernanda assina no Dossiê o artigo “Os desafios de estudantes com necessidades alimentares especiais no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)”.
O texto aponta que isso inclui necessidades restritivas ou suplementares, de indivíduos portadores de alteração metabólica ou fisiológica que cause mudanças, temporárias ou permanentes, relacionadas à utilização biológica de nutrientes ou a via de consumo alimentar.
“Necessidades alimentares especiais – como diabetes, alergias alimentares e doença celíaca, por exemplo – são temas de saúde pública e, embora possam acometer pessoas de qualquer idade, tornam-se ainda mais relevantes quando ocorrem durante os períodos da infância e adolescência, em razão da vulnerabilidade própria dessas faixas etárias”, explica Hack.
O artigo enfatiza que as ações de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) têm fundamental importância na compreensão dos diferentes aspectos das NAE por toda a comunidade escolar – estudantes, famílias, gestores/as, educadores/as e cozinheiros/as. “A conscientização colabora para a diminuição do preconceito e da discriminação de estudantes, bem como na melhor adaptação às diversas atividades escolares”.
O PNAE na Amazônia
Representando 59% do território brasileiro, além de se estender a outros países da América do Sul, “a dimensão territorial da Amazônia põe um desafio diferente ao princípio da territorialidade” no PNAE. Sua particularidade regional pede especificidades na leitura da realidade social em seu território, de suas distâncias continentais entre as diferentes comunidades e do modo como seus diversos e heterogêneos povos interagem com a floresta amazônica.
O “Fator Amazônico” no PNAE é esmiuçado no Dossiê ÓAÊ por Ivanira Amaral Dias, professora da Faculdade de Nutrição do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (UFPA) e líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Saúde, Alimentação e Nutrição.
O artigo assinado por ela parte de sua experiência como coordenadora do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar do Estado do Pará (CECANE PARÁ). Ivanira relata a experiência do PNAE em Afuá, município na Ilha de Marajó (PA).
O translado desafiador da equipe do CECANE envolveu um voo de Belém (PA) para Macapá (AP) e depois mais 8 horas de barco até Afuá. Dependendo da região, diferentes meios de locomoção são utilizados, tais como montaria (canoa a remo), voadeira, catraio (pequena embarcação a motor) e búfalos.
O fluxo dos rios, com períodos de vazante da maré ou excesso de maresias, dificulta o acesso dos estudantes às unidades escolares. Algumas escolas rurais desenvolvem um calendário escolar diferenciado diante das enchentes e alagamentos durante a época de grandes chuvas (inverno amazônico).
A primeira visita do CECANE encontrou um ambiente de “fragilidades na articulação entre os atores envolvidos com o segmento agricultura familiar, destacando principalmente a falta de apoio e incentivo da gestão municipal para fomento da produção agrícola local, insuficiência de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e desconhecimento sobre as normas do PNAE por parte das famílias agricultoras. Afuá comprava apenas de um agricultor familiar individual e o percentual de aquisição ficava abaixo de 5%”.
Passados seis anos desta visita, após reuniões com agricultores e diálogos com o poder público, “Afuá avançou em muitos aspectos na execução do PNAE. A gestão atual complementa os valores transferidos pelo governo federal, com a inclusão de mais alimentos da agricultura familiar no cardápio e o acesso de mais agricultores familiares ao programa. Um outro avanço foi a regionalização do cardápio e a inclusão de alimentos da sociobiodiversidade na alimentação escolar”, destaca o artigo.
Um outro passo dado foi o planejamento intersetorial da alimentação escolar pela gestão municipal. Exemplo disso é o “projeto ‘Açaí direto na escola’, uma ação que integra as Secretarias de Educação, Saúde, Agricultura e de Meio Ambiente e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/PA). Firmando contratos diretamente com agricultores familiares locais, comprando o fruto in natura para o processamento do açaí na cozinha escolar”.
Alimentação Escolar Quilombola
O Brasil possui 6 mil comunidades e 1,32 milhões de pessoas quilombolas, segundo dados de 2022 da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Porém, “os territórios quilombolas sofrem, historicamente, com o avanço violento e predatório do capital”, alerta Rute Ramos da Silva Costa. Ela é professora do Instituto de Alimentação e Nutrição do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), líder do Grupo de Pesquisa e Extensão CulinAfro e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena Clarissa Gomes da Silva.
De acordo com Rute, esse avanço sobre os territórios quilombolas “produz a expropriação e espoliação das terras, dos saberes, modos de viver e pensar, causam impactos ambientais irreversíveis, impõem terror, morte e o desaparecimento de comunidades inteiras”, explica.
Para ela, políticas públicas como o PNAE são mecanismos que devem contribuir para a realização dos direitos sociais dos quilombolas, incluindo a segurança alimentar e nutricional de estudantes, agricultores e suas famílias. A pesquisadora se debruça sobre isso no Dossiê com o artigo “O Programa Nacional de Alimentação Escolar em quilombos: caminhos para o direito à alimentação e à terra”.
A legislação do PNAE determina que, ao menos, 30% de seus recursos devem ser destinados para a compra de alimentos vindos da agricultura familiar, valorizando as culturas alimentares locais e priorizando mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas, assentados da reforma agrária e outros povos e comunidades tradicionais.
O Programa também possui um valor per capita específico para estudantes de escolas quilombolas, indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais. Atualmente, este valor diário é de R$0,86 por estudante e R$ 1,07 para estudantes em creches ou de escolas de tempo integral.
Rute analisa que o PNAE é também espaço fértil para robustecer a educação escolar quilombola por meio de educação alimentar e nutricional em afroperspectiva. A partir dos alimentos da roça quilombola, é possível dialogar sobre direito à alimentação, à terra e o direito da própria natureza.
“A comida nos ajuda a compreender e comunicar sobre as relações étnicorraciais, nos apoia no desenvolvimento de uma consciência crítica e política sobre o mundo”, enfatiza.
Mulheres e agroecologia no PNAE
Vivemos em uma sociedade onde ainda existe a divisão sexual do trabalho, que separa e hierarquiza as esferas produtivas e reprodutivas da vida, invisibilizando, explorando e desvalorizando o trabalho das mulheres. “As mulheres do campo, das florestas e das águas estão submetidas a condições de vida desiguais, tanto no que se refere ao acesso à renda monetária, como também à terra, ao território e à água, bem como às políticas públicas de financiamento, assistência técnica e acesso a mercados, dentre outros”.
É o explica Vanessa Schottz, professora e pesquisadora do Instituto de Alimentação e Nutrição do Centro Multidisciplinar da UFRJ Macaé e do Programa de Pós Graduação em Segurança Alimentar e Nutricional (PPGSAN), coordenadora do Projeto de Extensão Comida é Patrimônio, integrante do GT-Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e conselheira titular do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
“Não é possível avançar na implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) sem rever a concepção equivocada de que a participação feminina na produção é meramente complementar à do marido ou que as atividades desempenhadas pelas mulheres, em diversos espaços e contextos, como a amamentação e a produção de alimentos para a autoconsumo, não têm valor mensurável e, por isso, não merecem ser objeto de incentivos oficiais por meio de políticas públicas”, alerta a pesquisadora.
Segundo Vanessa, por sua capilaridade e por envolver a aplicação de recursos federais de aproximadamente R$ 5,5 bilhões de reais ao ano na compra de alimentos, o PNAE se caracteriza como um mercado institucional com enorme potencial de promover o acesso à alimentação adequada e saudável e, ao mesmo tempo, contribuir para o fomento à produção de alimentos da agricultura familiar e agroecológicos, valorizando a cultura alimentar local.
“O PNAE também deve se constituir como um instrumento de cidadania para as mulheres do campo, das florestas e das águas, reconhecendo e valorizando o seu papel social e econômico para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN)”, defende.
Schottz é autora do artigo “Mulheres e agroecologia no PNAE: reflexões da pesquisa-ação Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade”, que aborda essas questões no Dossiê ÓAÊ.
Apesar deste contexto de desigualdades, a partir de estudos apresentados no artigo, a pesquisadora destaca a formação de grupos informais como uma importante estratégia das mulheres para terem sua primeira experiência de fornecimento para o PNAE.
Outras características observadas na produção das mulheres foram a multifuncionalidade dos espaços de produção, experimentação e troca de conhecimentos; a diversidade produtiva; a conservação da agrobiodiversidade; a importância das relações de natureza não monetária – como o autoconsumo, a troca e a doação de alimentos; a diversidade de preparações culinárias; o emprego de variadas técnicas de beneficiamento e de preparação dos alimentos.
De acordo com Vanessa, “a recente aprovação da lei 14.660/2023, que inclui os grupos formais e informais de mulheres dentre os critérios prioritários para a seleção de fornecedores da agricultura familiar [para o PNAE], é uma conquista importante dos movimentos de mulheres. Todavia, os desafios identificados na pesquisa apontam que o enfrentamento das desigualdades de acesso das mulheres ao mercado institucional da alimentação escolar requer o aprimoramento de um conjunto amplo de políticas públicas”, conclui.
Webinar de lançamento
Para promover e aprofundar os debates apresentados pelo Dossiê, o lançamento contará com momentos de exposição e a participação aberta para a sociedade civil fazer perguntas e contribuições. A atividade focará para a Parte 1 da publicação, sobre as “Diversidades e desigualdades na alimentação escolar”.
“O que se observa é que há ainda uma grande distância entre as determinações legais e o que acontece no mundo real da alimentação escolar em cada território. Temos uma boa lei que rege o PNAE, mas há ainda muito a caminhar para a adequação de normas infralegais no desenho de financiamento e, sobretudo, na execução do programa, para que as prioridades determinadas em lei e os demais mecanismos que reconhecem e buscam reconhecer diferenças e superar desigualdades possam se concretizar”, destaca a introdução do Dossiê.
A Parte 2 da publicação aborda o aprimoramento do controle social, incidência política e a exigibilidade do direito à alimentação escolar, identificação e mitigação de conflitos de interesses no PNAE, implicações do avanço das terceirizadas e as ameaças e potencialidades de projetos de lei em tramitação no Congresso. Debates que também serão aprofundados em uma próxima atividade do ÓAÊ.