Por Yuri Simeon
Do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
Como e com quais critérios podemos monitorar a qualidade da alimentação escolar? Partindo dessas perguntas, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) lança a publicação Levanta Dados Monitoramento Para Monitorar o Direito à Alimentação Escolar, que apresenta uma matriz de monitoramento para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Com sete dimensões e 21 indicadores, a matriz de monitoramento permite analisar a qualidade da alimentação escolar utilizando dados do Pnae, disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Censo Escolar, entre outros dados públicos, incluindo o uso da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A publicação foi elaborada “com o objetivo de ampliar a transparência e possibilitar melhores condições para o monitoramento, o controle social e estudo sobre o Pnae”, destaca a introdução.
O método utilizado para a construção dos indicadores foi adaptado do estudo da nutricionista e doutora em Saúde Pública Daniela Bicalho. Ela atuou como consultora responsável pela proposta metodológica e sistematização dos dados.
“A construção de uma matriz de monitoramento do Pnae é crucial. Ela permite avaliar de forma sistemática o cumprimento dos objetivos e diretrizes do programa, como a oferta de uma alimentação saudável e adequada e o fortalecimento da agricultura familiar, por exemplo”, enfatiza Bicalho.
Como exemplo disso, a matriz possui uma dimensão de monitoramento com foco na Alimentação Adequada e Saudável. Oferecendo como indicadores a porcentagem de compras de alimentos in natura, de processados e ultraprocessados, porcentagem de entidades executoras (EExs) que realizam testes de aceitabilidade e atendimento a estudantes com necessidades alimentares especiais (NAE).
As EExs são as secretarias de Educação dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e as escolas federais. A dimensão de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) possui como indicador o percentual de entidades executoras com ações de EAN planejadas, executadas e documentadas.
Outras dimensões da matriz analisam a aquisição da agricultura familiar e o acesso por povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Entre seus indicadores estão o percentual de compras da agricultura familiar, de alimentos orgânicos e agroecológicos, percentual de escolas em territórios indígenas e quilombolas e de cardápios adequados para esses grupos – respeitando a cultura alimentar local.
Para a pesquisadora, a matriz de monitoramento possibilita aprimorar o Pnae e avaliar o programa nas diferentes esferas de governo. “Essa matriz pode auxiliar a identificar gargalos específicos na implementação, facilitando ajustes contínuos e mais precisos nas políticas e ações locais. E também o acompanhamento pelo controle social”, ressalta Bicalho.
Desafios para monitorar a alimentação escolar
Apesar da alimentação escolar ser uma política estratégica para o desenvolvimento de crianças e adolescentes através da garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas, ainda é preciso uma maior conscientização sobre sua importância, sobretudo pelos gestores públicos.
É o que explica Albaneide Peixinho, nutricionista, mestre em Ciências da Saúde, ex-coordenadora do Pnae, coordenadora de projetos do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU e integrante do Comitê Consultivo do ÓAÊ representando a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran).
Segundo ela, é preciso que a comunidade escolar e, sobretudo, os gestores compreendam que a “alimentação saudável e adequada contribui para a saúde humana, a diminuição no impacto do atendimento do SUS, a diminuição em patologias evitáveis, além do Pnae ser um dever do Estado”. Conscientes disso, “todos os gestores apostariam seriamente na alimentação escolar”.
Uma das sete dimensões da matriz está diretamente relacionada com a gestão realizada pelas entidades executoras (EExs), englobando o financiamento, gestão, infraestrutura e recursos humanos. Essa dimensão possui em seus indicadores os valores repassados para as EExs, o aporte (cofinanciamento) feito por elas para aquisição de alimentos para o Pnae, a contratação de empresas terceirizadas, a existência de refeitórios e cozinhas em condições de uso e o número de nutricionistas e cozinheiras. Isso possibilita um monitoramento da execução do programa.
Ainda são muitos os desafios para garantir o monitoramento na execução do orçamento do programa e, por vezes, leva-se muito tempo para que irregularidades sejam constatadas. “A prestação de contas é feita no ano seguinte da execução e caso se encontre problemas de descumprimento das normas do Pnae, a correção dos rumos daquela execução, só se dará no próximo ano. Se o gestor não aplicar os 30% [mínimos para compras da agricultura familiar] o conselho de alimentação escolar (CAE), o FNDE, os órgãos de controle só vão saber no ano seguinte”, explica Albaneide.
Isso impacta diretamente na qualidade da alimentação que será oferecida aos estudantes e na produção da agricultura familiar. “Então, o agricultor saiu prejudicado, porque produziu e não vendeu, e os escolares saíram prejudicados, porque foi ferido o seu direito, podendo ou não ter consumido alimentos saudáveis”, detalha.
“Mesmo que o monitoramento seja feito no mesmo ano, são poucas entidades executoras visitadas, frente ao número existente, em função do déficit de pessoal do FNDE, que tem como apoio os órgãos de fiscalização, como CGU (Controladoria Geral da União), TCU (Tribunal de Contas da União), Conselhos Regionais de Nutrição e os Cecanes (Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar)”, complementa.
A ex-coordenadora do Pnae avalia como insuficiente as condições atuais para o monitoramento do programa por parte do FNDE. “Uma questão grave no monitoramento é que ele é realizado dentro de um percentual muito pequeno quanto ao quantitativo de municípios, estados, instituições federais e as escolas conveniadas que participam do programa”, pontua. “Com o advento dos Cecanes melhorou muito esse percentual na fiscalização, mas acredito que há uma necessidade de integrar esse monitoramento dentro do órgão e com outros parceiros externos”, descreve.
Ela destaca que “nem sempre o cardápio elaborado pelo nutricionista é efetivamente fornecido no dia a dia das escolas. Ainda usamos metodologias muito arcaicas para monitorar o programa”. Um elemento que agrava essa situação é a recorrência de escolas que não cumprem com todas as diretrizes do Pnae serem aquelas localizadas em áreas com índices mais elevados de insegurança alimentar e nutricional.
A não priorização de escolas periféricas pelos gestores públicos têm o racismo institucional como um fator determinante para esse tipo de desigualdade. Por isso, entre as dimensões da matriz de monitoramento estão as características gerais dos estudantes, com raça e gênero como indicadores, e o atendimento de escolas em territórios indígenas e quilombolas. Possibilitando traçar esses recortes ao monitorar a alimentação escolar.
Controle social do Pnae
Presente nos 5.570 municípios brasileiros, 26 estados e Distrito Federal, o Pnae atende escolas municipais, estaduais e federais, além de conveniadas, totalizando mais de 178 mil escolas de educação básica no país. A grande capilaridade do programa é um de seus maiores trunfos, mas também exige o aperfeiçoamento no monitoramento do programa.
Segundo a Lei do Pnae, os conselhos de alimentação escolar são obrigatórios em todos os estados e municípios e Distrito Federal, sendo o pleno funcionamento destes conselhos uma condição para o recebimento dos recursos do programa. Porém, são muitos os relatos de conselhos inoperantes, principalmente por falta de apoio dos gestores públicos.
A sétima dimensão da matriz de monitoramento é a Participação e Controle Social. Incluindo como indicadores o percentual de entidades executoras com CAEs com plano de ação e o percentual que garantem aos conselhos infraestrutura adequada para atividades.
Para Albaneide, o fortalecimento dos conselhos de alimentação escolar são de fundamental importância para o avanço do monitoramento e controle social da alimentação escolar. “A maioria dos Conselhos reclamam da falta de estrutura e condições para que o conselho de alimentação escolar possam monitorar de fato todas as escolas. Não dá mais para continuar monitorando com papel e planilha de Excel. E, ainda mesmo com sistema informatizado, no final é autodeclaratório pelo gestor. O CAE, na prestação, diz que aprova, reprova ou aprova parcialmente”, critica. “Uma sugestão seria abrir um canal de ouvidoria nas escolas, a exemplo da saúde”, propõe ela.
A nutricionista denuncia que o tempo de resposta em relação às denúncias ainda é muito grande e está condicionado às limitações de estrutura de pessoal do FNDE. “Quando o conselho de alimentação escolar reprova a prestação de contas [do estado ou município], qual será a agilidade do órgão que analisa para tomar uma atitude drástica? Temos poucos funcionários no FNDE, melhorou muito com a chamada de cerca de 100 servidores neste governo, mas será que é suficiente para desenvolver todas as atividades que a educação requer?”, questiona.
Ela defende a necessidade de mais investimentos em pessoal no FNDE, recursos tecnológicos e modelos mais atualizados para que se consiga monitorar cada escola. Além de envolver mais a comunidade escolar e outros organismos, como o “ÓAÊ, e os conselhos regionais e federal de Nutrição. E poderiam se criar conselhos gestores por escola, que passariam a assessorar o Conselho Municipal ou Estadual de Alimentação. É necessário e urgente que se fortaleça o Fórum Nacional dos CAEs como um instrumento importante para a formação dos conselheiros e para o monitoramento mais eficiente”, elenca.
Obstáculos nos dados do Pnae
Um ponto bastante criticado para o monitoramento do Pnae é a dificuldade para acessar dados e informações relacionadas ao programa, gerando obstáculos para o monitoramento.
De acordo com Peixinho, “o banco de dados do FNDE é ferramenta fundamental para o monitoramento, inclusive para o observar o cumprimento das metas, porém ele é muito difícil e limitado pela falta de detalhamento e especialmente pela acessibilidade dos dados publicados”, diz a integrante do ÓAÊ.
Para a construção da matriz de monitoramento, entre as fontes de dados do FNDE indicadas para uso estão o Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SiGPC) e o Sistema de Gestão de Conselhos (SIGECON). Porém esses dados têm natureza autodeclarada (quando não relativas às notas fiscais de aquisição de alimentos), ou seja, são respondidos por gestores públicos e depois enviados aos CAEs para referendar, ou não, a prestação de contas em relatórios anuais de gestão e controle social – estando suscetíveis a distorções.
Um outro agravante é a transição em curso desses sistemas para o sistema de gestão “BB Gestão Ágil”, desenvolvido pelo Banco do Brasil. O principal objetivo dessa mudança seria permitir “que o acompanhamento da execução dos programas e projetos educacionais ocorra em tempo real”, segundo comunicado do FNDE.
Porém são muitas as dúvidas entre conselheiros, nutricionistas, gestores e representantes da sociedade civil sobre como será o monitoramento neste novo sistema, sem perder os avanços feitos até aqui – especialmente na execução das diretrizes do programa.
Para Albaneide, “é necessário também uma melhoria da comunicação em diferentes esferas governamentais que poderiam permitir uma gestão mais eficiente e uma resolução mais ágil dos entraves que impactam o programa”.
Com essa publicação, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) convida toda a sociedade, principalmente pesquisadoras/es, nutricionistas, integrantes de CAEs e de Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (Conseas) para conhecer os dados apresentados a partir da matriz de monitoramento, com o objetivo de analisar e difundir como está a qualidade da alimentação escolar e quais são as possibilidades e entraves para o seu monitoramento.