Diante de uma complexa problemática alimentar constituída de um cenário de transição nutricional e de um modelo produtivo pautado na industrialização da agricultura e dos alimentos, causando a marginalização de grande parte dos agricultores familiares, verifica-se no Brasil ações políticas e sociais que tendem a desestabilizar as cadeias de abastecimento dominantes. Na última década o Estado tem formulado e implementado a política de Segurança Alimentar e Nutricional sustentável com proposições de reaproximação entre produção e consumo na tentativa de enfrentar estas problemáticas. Uma destas ações é a revisão do Programa de Alimentação Escolar (PAE) e suas formas de aquisição pública, incentivando as Entidades Executoras a adquirir produtos de agricultores familiares. No entanto, até a obrigatoriedade legal, alguns municípios já haviam realizado esta construção, apontando para o fato de que os atores sociais e o local seriam fatores importantes na mudança estrutural. Nesta direção, surge uma questão central: como estas cadeias alimentares particulares e localizadas de abastecimento do PAE são construídas? O objetivo foi identificar e analisar como ocorre a dinâmica e a construção social de práticas econômicas contemporâneas e heterogêneas de consumo e produção de alimentos através do PAE. Trabalhou-se com as seguintes hipóteses: os atores movidos por diferentes interesses e/ou necessidades, mas com objetivos congruentes, criam estratégias que, a partir de relações de poder e negociações tomam uma coerência cada vez maior, provocando modificações no modelo dominante; o local potencializa esse movimento pela proximidade, possibilitando uma maior interação social, enraizamento nos comportamentos e a generalização e institucionalização de discursos e significados; o Estado é um ator-chave nesse processo, pois tem o poder de regulação, guiando comportamentos e discursos, incentivando-os ou inibindoos. Para testar estas hipóteses, utilizou-se o estudo de caso do município de Rolante (que adquire produtos de agricultores locais desde 1998) com abordagem qualitativa de coleta e análise de dados. Constatou-se que esta construção ocorreu a partir de uma revisão do modelode desenvolvimento perseguido, não mais voltado à industrialização e urbanização, mas ao rural. Esta revisão centrou-se em alguns atores como os gestores da época e os agricultores, com forte influência de extensionistas da Emater, que se mobilizaram para viabilizar novos canais de comercialização, entre eles, o mercado institucional da alimentação escolar. Os consumidores se agregaram a esse movimento buscando a melhora na qualidade dos alimentos e a garantia de suficiência. As interfaces foram facilitadas pela utilização dos Conselhos Gestores como locais de negociação e governança. A mudança nas regras jurídicas dos processos de aquisição pública ocorreu a partir da contestação pelas regras morais e pelo poder do gestor. A participação do agricultor nos trâmites licitatórios estava relacionada à tomada de decisão pautada na garantia de sua autonomia e as interfaces de conhecimento foram fundamentais para transpor as barreiras de entrada determinadas pelas exigências de formalização das agroindústrias. A construção social desse mercado foi amparada pelos valores, significados e regras específicos daquele local, sendo que a tradição passou a ser revalorizada e a proximidade amparou a confiança do consumidor e o comprometimento do produtor. Destas relações, a qualidade dos produtos não se constituiu de sistemas peritos de segurança sanitária, mas de outros atributos relacionados ao local, ao produtor e suas especificidades. A institucionalização desta prática foi favorecida pelos seus resultados, mas estrategicamente fomentada pela intersetorialidade e pelas intervenções junto ao consumidor Rolantense no sentido de incentivá-lo à retroalimentação destas cadeias curtas de abastecimento.