“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”, afirmou a escritora Carolina de Jesus em seu livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, publicado em 1960.
O que Carolina retrata em seu livro não é apenas a sua realidade da época dos anos 1960. Ela também representa a força de muitas outras mulheres brasileiras da atualidade, que veem no enfrentamento da fome seu principal desafio de luta.
Seguindo o mês em que se celebrou o Dia Internacional da Mulher, o Observatório da Alimentação Escolar destaca a atuação de algumas dessas mulheres que, durante a pandemia, se organizam para conseguir que seus filhos – e muitos outros estudantes – possam ter alimentação escolar garantida.
Boa leitura!
O ativismo das mães pela alimentação escolar
Logo que teve início a pandemia do Coronavírus, as aulas nas escolas públicas de todo o Brasil foram suspensas e, com isso, as refeições nas escolas. Ainda que o congresso tenha autorizado a distribuição de cestas de alimentos com os recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), isso ocorreu de forma muito irregular por todo país, e no geral com falta de regularidade e qualidade. Ao se depararem com a falta de alimentos em casa, mães de estudantes de escolas públicas, em sua maioria mulheres negras, começaram a se organizar para exigir que as cestas de alimentos do PNAE fossem distribuídas. No estado do Rio de Janeiro, a indignação destas mães transformou o que até então eram reclamações, vozes e lutas isoladas nas redes sociais, em vários coletivos organizados para exigir a alimentação escolar.
Viviane Reis, Ana Lúcia Rodrigues, Luciana Rodrigues e Luísa Rodrigues são algumas das cerca de 500 mães que fazem parte do grupo “Mães de Itaboraí: nenhum direito a menos. Criada em em abril de 2020, a iniciativa foi inspirada pela mobilização do grupo Passeata das Mães, que mobilizou mulheres do município do Rio de Janeiro, e de iniciativas individuais de algumas mães de Itaboraí que já haviam entrado com representações judiciais junto ao poder público para exigir o direito à alimentação escolar de seus filhos.
Depois de muitas tentativas frustradas de diálogo com o poder público e com o conselho de alimentação escolar, e de manifestações na porta da prefeitura, as mães de Itaboraí entenderam que era preciso ter alguma base judicial para seguir na luta, e que precisavam tomar alguma iniciativa em relação às famílias do grupo que estavam passando fome.
A gente ficou tentando reunião com o prefeito para ver se conseguia uma via amigável, mas ele não nos recebeu. Não quis diálogo. Fomos até a porta da prefeitura, 48 mães, mas eles [representantes do governo municipal] não quiseram nos receber. Falaram que configurava como aglomeração estar recebendo essas mães. Só que aí ele [o prefeito] fez inauguração de hospital, fez reunião política, ele estava se recandidatando, entendeu?Viviane Reis
As mães de Itaboraí puderam contar com o apoio da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, mas ainda assim foram poucas as conquistas. A Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do RJ notificou todos os 92 municípios e o governo do estado do Rio de Janeiro sobre a obrigação da distribuição das cestas do PNAE a todos os estudantes da rede básica de ensino e processou aqueles que não estavam assegurando este direito, dentre os quais Itaboraí. Até o momento,foram distribuídas apenas duas cestas, uma no mês de novembro e outra no final de dezembro de 2020.
Tá difícil garantir a distribuição das cestas de alimentos, mesmo com ordem judicial. A gente acha que o que foi dado, o que está sendo entregue às crianças não supre essa necessidade, não condiz com o que era na escolaLuciana Rodrigues
Movidas pela empatia com as mulheres do grupo, que estavam em situação de maior vulnerabilidade, as Mães de Itaboraí conseguiram arrecadar recursos para a distribuição de 100 cestas básicas. No ato de distribuição das cestas, em um bairro muito pobre de Itaboraí, foram agredidas e intimidadas por um servidor municipal, e sua ação solidária foi equivocadamente associada a uma ação partidária e eleitoral.
Mães de Itaboraí: muitas lutas em uma só
Ao se mobilizarem para que seus filhos e todos os estudantes do município de Itaborarí (RJ) pudessem ter garantidos os alimentos vindos do Programa Nacional de Alimentação Escolar durante o fechamento das escolas, as mães mostraram também que sua luta não é apenas uma: ela envolve a luta contra o machismo e, principalmente, o racismo, já que é a população negra que é a menos assistida pelo Estado e que sofre com a baixa qualidade dos serviços e dos atendimentos prestados pelas instituições.
As mães de Itaboraí é um grupo formado principalmente por mulheres negras e de baixa renda. Como elas relataram, não há escuta às suas reivindicações e essa violência sofrida por elas na tentativa do exercício de cidadania são sinais explícitos do racismo institucional, forma de discriminação racial que ocorre por meios institucionais. São exemplos dessa prática racista as abordagens mais violentas da polícia contra pessoas negras, a desconfiança de agentes de segurança e de empresas contra pessoas negras sem justificativas coerentes, mas também situações de desvantagem no acesso aos benefícios sociais.
RACISMO INSTITUCIONAL é o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações.
Definição do Programa de Combate ao Racismo Institucional, implementado no Brasil em 2005
Não há como compreender o racismo institucional, sem explicitar sua relação com o racismo estrutural. Cristalizado na estrutura social brasileira, o racismo estrutural pode ser percebido na constatação de que poucas pessoas negras ou de origem indígena ocupam cargos de chefia em grandes empresas, no poder público, ou nos cursos mais concorridos das universidades. Sendo suas vozes e posições políticas negadas, como é o caso da falta de escuta do prefeito e secretários de Itaboraí, em relação à demanda das mães.
As mulheres, em especial as mulheres negras, estão diariamente na luta para garantir o bem estar de seus familiares e comunidade, sendo a alimentação um dos principais cuidados que possuem. Muitas destas mulheres têm jornadas de trabalho extensas, além do tempo que gastam no deslocamento entre a casa e o trabalho. Em muitos casos preparam o alimento no pouco tempo que tem em casa e encarregam suas filhas e filhos mais velhos a responsabilidade de alimentar os mais novos, ou ainda contam com a ajuda de vizinhas, como rede de apoio.
Na opinião de Viviane, as mães que conseguem colocar seus filhos em escolas e creches públicas veem na alimentação escolar um importante suporte, em especial as “mães que são sozinhas”, que não dividem a responsabilidade da criação dos filhos com os pais.
O PNAE é importante para as crianças, mas é muito importante também para as mães, porque tem muita mãe que trabalha, que não têm tempo, que sai de madrugada de casa. Houve um tempo que a única comida, com arroz e feijão, que meus filhos tinham era essa da escola. Muito importante por outro lado também, para as outras mães que não tem condições de dar esse alimento em casaViviane Reis
O que já era um problema estrutural, foi intensificado durante a pandemia, que escancarou as desigualdades de gênero e raça, bem como a sobrecarga de trabalho, que tradicionalmente recai sobre as mulheres.
As pessoas negras sentiram com maior frequência, as consequências do isolamento e da exclusão do mercado de trabalho. Segundo o DIEESE, dos 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 6,3 milhões eram negros e negras, o equivalente a 71% do total. E neste cenário desolador foram principalmente as mulheres que se ocuparam do bem estar físico, econômico e emocional dos lares. Levantamento feito pela Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, junto a 2.641 mulheres, mostrou que o isolamento social colocou em risco o sustento dos lares de 40% delas, e que 50% passou a cuidar de alguém na pandemia.
Muitas não conseguiram ter acesso ao auxílio emergencial, tiveram o auxílio negado, não possuem Bolsa Família, pois também há a burocracia nas papeladas e documentos. Muitas mães estão vendendo balas nas ruas para conseguir dinheiro para comprar comidaViviane Reis
Violações ao direito à alimentação escolar na pandemia
Diante desse contexto relatado pelas Mães de Itaboraí e observados em estudos, não há como esperar que uma única política pública possa assegurar o direito humano à alimentação, mas o fato é que governadores e prefeitos tinham nas mãos o PNAE, um potente programa para somar no front de enfrentamento da fome, durante essa grave crise humanitária.
Contudo, boa parte desses governantes não assumiu a alimentação escolar como prioridade. Falta coordenação nacional, recursos públicos adicionais, mas principalmente vontade política para fazer alimento de qualidade chegar na mesa de quem precisa. É o que mostra o Relatório da Missão sobre Violações ao Direito à Alimentação Escolar na Pandemia de Covid-19: Casos do Estado do Rio de Janeiro e do Município de Remanso (Bahia), recém lançado pela Plataforma Dhesca Brasil. A missão trouxe à tona denúncias, mas também uma série de recomendações, tais como: a ampliação do orçamento do PNAE, a inclusão de alimentos frescos e minimamente processados nas cestas, e a retomada imediata das compras da agricultura familiar.
O Relatório analisa o caso de Itaboraí e mostrou que as cestas, no valor unitário licitado de R$60, tinham em sua composição não muito mais do que arroz, feijão, óleo, leite em pó, macarrão, café, achocolatado e açúcar. O que está muito aquém do que preconiza o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
“Pelo que pergunto ao meu filho aqui em casa, eles não têm uma comida maravilhosa [na escola], mas sempre há comida. Eu acho que essa cesta foi dada com muita má vontade. O que a gente trouxe para casa não representa o alimento que eles consumiam na escola”, afirma Viviane Reis.
Outra preocupação expressada por Luciana Rodrigues foi em relação às crianças e adolescentes que têm necessidades alimentares especiais, segundo ela “não houve uma alimentação no kit diferenciada para essas crianças com problema. Aí novamente a gente ficou em dúvida: será que essas nossas crianças que possuem essa doença (diabetes), ou intolerância a lactose, ela na escola se alimenta com o mesmo alimento das outras crianças?”.
RESOLUÇÃO FNDE 02/2020 (PNAE na Pandemia)
De acordo com a resolução, os recursos do PNAE devem ser usados exclusivamente para garantir a alimentação dos estudantes da educação básica:
Os kits (cestas) devem ser definidos pela equipe de nutrição local, observando o per capita adequado à faixa etária, de acordo com o período em que o estudante estaria sendo atendido na unidade escolar
Os kit devem seguir as determinações da legislação do PNAE no que se refere à qualidade nutricional
Não é só em Itaboraí que houve violação do direito à alimentação escolar. Em Macapá (AP), Lorena Araújo, nutricionista e mãe de João, apresenta uma realidade não muito diferente do que acontece em Itaboraí. Ela conta que mesmo antes da pandemia, a alimentação na escola de seu filho “não era das melhores. Não tem proteína: meu filho vai para a escola e come biscoito?”, explica.
Segundo ela, o estado já não estava obedecendo as diretrizes do PNAE antes da pandemia e, com a interrupção das aulas, os alimentos do PNAE foram distribuídos em apenas alguns bairros de Macapá. “A gente recebeu o alimento, foi a cesta básica até dezembro né, a gente recebeu de abril a dezembro, agora, janeiro fevereiro já estamos quase em março, e não se ouve falar em mais nada”.
A preocupação de Lorena com a não continuidade da distribuição das cestas, é algo que, nesse momento, aflige muitas outras mães que desde o início do ano deixaram de receber as cestas do PNAE. A falta de distribuição das cestas de alimentação e a alta dos preços de alimentos, a burocratização que mulheres mães e famílias encontram para conseguir o auxílio emergencial, as incertezas sobre os rumos do PNAE, diante do dilema da volta às aulas faz com que aumente o risco da fome.
Luta das mulheres: pressão e mobilização para garantir alimentação aos estudantes
No ano passado, nem bem as aulas começaram e, com a pandemia, as escolas foram fechadas. Ainda que as aulas continuassem à distância, em muitos lugares os estudantes ficaram à mercê da (falta de) vontade política para que seu direito à alimentação escolar fosse garantido. No momento, vivemos um clima de grandes incertezas sobre a perspectiva de volta às aulas, diante de uma realidade de escolas públicas despreparadas, sem condições adequadas e seguras do ponto de vista epidemiológico e de infraestrutura.
A luta tanto das Mães de Itaboraí, como o acompanhamento que a Lorena fez da alimentação de seu filho, representam inúmeras mães desse Brasil afora, que enfrentam, além da precariedade da gestão do sistema público de ensino, outros obstáculos como o machismo e o racismo em suas diversas faces, como a institucional e a estrutural.
Como Mariana Santarelli e Andressa Pellanda escrevem no artigo publicado pelo Observatório da Alimentação Escolar, “O dilema das voltas aulas – desafios para a gestão da alimentação escolar em 2021”, inspiradas/os na luta das mulheres, é preciso pressionar o poder público para que alimentação escolar seja tratada como estratégia primordial no combate à fome.
“A retomada da agenda de garantia de direitos se faz urgente neste país, sob pena de mais e mais mortes. A alimentação escolar deve ser tratada como estratégia primordial no combate à fome, promoção de uma alimentação e nutrição adequadas, e de garantia do direito à educação. São vários direitos, interligados, e que vêm sendo negados a milhões. Isso precisa mudar. Para mobilizar a sociedade e pressionar o poder público é que lançamos o Observatório da Alimentação Escolar. A sociedade civil segue fazendo sua parte, resta aos governos cumprirem seu papel”.