Da política ao prato: entenda a história da merenda escolar

São décadas de altos e baixos que nos colocam onde estamos hoje, com um programa que atende milhões de estudantes, mas tem destino incerto na pandemia. Veja nesta linha do tempo.

1 de abril de 2021 | Matérias Investigativas, Notícias

por Mylena Melo | Projeto O Joio e o Trigo

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é responsável pela oferta de alimentação escolar a todos os estudantes da educação básica pública do Brasil. Atende cerca de 41 milhões de pessoas, com repasses financeiros aos 27 Estados e 5.570 municípios, que chegam à ordem de R$ 4 bilhões anuais. Para muitos desses estudantes, a refeição que se faz na escola é a única ou a principal do dia.

Considerada uma das mais relevantes políticas de garantia do direito à alimentação, também é uma das mais antigas. Sua trajetória é longa e acidentada. Por décadas foram criados, modificados e extintos inúmeros órgãos oficiais para garantir a merenda. Interesses dos mais diversos estiveram em jogo. Na verdade ainda estão.

Com a pandemia, o programa passa por um dos seus momentos mais difíceis. E ainda há mais desafios por vir: os municípios têm gestores novos, que ainda não estão habituados à logística de execução do PNAE (que não é nada simples), e já se fala em volta às aulas. Mas o silêncio é ensurdecedor quando o assunto é a merenda nesse novo esquema de aulas com revezamento de estudantes.

No dia em que o aluno estiver em casa vai ter merenda? Vai ter cesta básica? Ou só come quem está na escola, e quem fica em casa tem seu direito à alimentação escolar violado? O FNDE chegou a publicar uma cartilha com orientações para a execução do programa nesse contexto, mas ela não responde a nenhuma dessas perguntas. As recomendações são apenas quanto a higienização, uso de máscaras e distanciamento.Para entender como chegamos até aqui, o Joio resumiu mais de 60 anos de história do PNAE na linha do tempo a seguir.

Anos 1940: Plantando a semente

A possibilidade de criar um programa público de alimentação escolar já era debatida em fóruns desde o início da década. Em 1945 o governo de Getúlio Vargas instalou a Comissão Nacional de Alimentação (CNA), cuja função era estudar o estado nutricional dos brasileiros, trabalhar pela correção de defeitos e deficiências da dieta por meio de campanhas educativas e contribuir para o desenvolvimento da indústria de alimentos desidratados. Vale lembrar que nesse ano terminava a Segunda Guerra Mundial e os alimentos desidratados eram parte do cardápio do Exército, então precisavam encontrar novos mercados com o fim do conflito.

No entanto, não houve iniciativas concretas de intervenção nacional nesse momento.

Anos 1950: Menu importado

O grande marco da década foi o programa “Alimentos para a paz”, aprovado nos Estados Unidos em 1954. O governo norte-americano comprava o excedente de seus produtores para doar ou revender a outros países. Na prática, era um subsídio que servia para estabilizar os preços do mercado interno, ao mesmo tempo em que possibilitava a entrada de técnicas e alimentos dos EUA no mercado mundial. O programa incluía produtos agroindustrializados como leite em pó e margarina, mas também cápsulas de vitaminas e tabaco.

Os acordos de cooperação internacional que surgiram a partir daí impulsionaram o então presidente brasileiro, Café Filho, a criar em 1955 a Campanha da Merenda Escolar (CME), considerada marco de origem do PNAE atual. No ano seguinte, Juscelino Kubitschek assume a Presidência e muda o nome da CME para Campanha Nacional de Merenda Escolar (CNME). A intenção era centralizar e nacionalizar a aquisição e distribuição de alimentos. Para financiar o programa, criou um fundo com recursos da União, de Estados e municípios, e de doações.

Houve um primeiro ciclo de expansão, no qual mais da metade dos municípios foram atendidos pela CNME, mas depois, especialmente entre 1960 e 1963, a adesão caiu para 30%.

Anos 1960: O agro à espreita

A partir de 1965 a CNME passou a ser chamada de Campanha Nacional de Alimentação Escolar (CNAE) e incorporou também a educação alimentar entre suas atribuições. Com essa mudança, foi lançado o Programa de Almoço Escolar, cujo objetivo era alterar a ideia de “merenda” para servir verdadeiras refeições aos estudantes, incluindo também os alunos de cursos supletivos, e de parte do ensino secundário e dos pré-escolares.

Mas a participação de organismos internacionais na intermediação do envio de alimentos para a merenda escolar foi caindo gradativamente, e a partir de 1965 o país começou a enfrentar dificuldades em atingir suas metas de fornecimento. Com o fim do programa “Alimentos para a paz”, no início dos anos 70, o Brasil precisou repensar a estratégia de abastecimento da alimentação escolar. O setor empresarial agrícola nacional via no vácuo deixado pelos EUA uma janela de oportunidade para a venda institucional – de preferência centralizada no governo federal. E duas organizações de produtores, recém-criadas, faziam lobby para que isso virasse realidade: a Associação Brasileira de Alimentação Escolar (Abae) e a Associação Brasileira de Indústrias de Alimentação (Abia).

Anos 1970: Cartel do rango

Em 1972 o ditador Emílio Médici cria o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), vinculado ao Ministério da Saúde, com a tarefa de formular o Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan).

Foram publicadas duas versões do Pronan. A primeira, de 1973, era superficial e não resolvia o problema. A segunda, de 1976, passou por seguidos cortes orçamentários e descontinuidades operacionais. Além disso, apesar de estabelecer como diretriz o apoio ao pequeno agricultor e a aquisição regionalizada de alimentos, na prática manteve um cartel. No final da década, apenas 12 empresas forneciam para a CNME. Em 1979, quatro empresas somavam mais de 70% do total de aquisições de alimentos: as nacionais Nutrimental (da barrinha de cereal Nutry), Pratika e Liotécnica, e a holandesa Nutricia, pioneira no mercado de fórmulas infantis que hoje faz parte do grupo Danone.

Nesse mesmo ano, que marcou o final da vigência do II Pronan, o governo federal passou a adotar pela primeira vez a nomenclatura de Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com previsão de fornecimento de uma refeição diária durante o período letivo (180 dias/ano) a todos os alunos matriculados na rede pública e filantrópica de ensino fundamental.

Confira aqui o gráfico da evolução do atendimento: CME, CMNE e PNAE (1954-1970).

Anos 1980: Transição à vista

Depois de mais de 20 anos de regime militar, o país estava afundado em uma grave crise econômica e social. Em 1985 acaba a ditadura e começa a ser construída a Constituição de 1988, que reconheceu a alimentação como direito do estudante e dever do Estado. Em todo o país debatia-se a construção de um novo sistema para implementar políticas sociais, mais descentralizado, com o governo federal provendo instrumentos e recursos para que os governos estaduais e municipais fizessem a execução.

O cenário de instabilidade política do início da década obrigou os governos subnacionais a colocarem a mão na massa para garantir a merenda – política antes totalmente centralizada no governo federal, que decidia o cardápio, fazia as compras e distribuía os alimentos para todo o território nacional. Essa experiência inspirou mudanças no PNAE.

A CNAE já havia sido extinta em 1981. Em seu lugar foi criado o Instituto Nacional de Assistência ao Educando (Inae), que se tornou responsável pela administração financeira e normatização da execução do PNAE. Dois anos depois ele foi incorporado à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que comandou o Programa de Municipalização da Merenda Escolar (PMME) entre 1986 e 1988. A compra de alimentos básicos e in natura passa a ser regionalizada através de convênios, enquanto as aquisições de produtos industrializados mantinham-se centralizadas pela União.

A adesão dos municípios foi tímida, em parte porque existia um esvaziamento técnico e financeiro das estruturas estatais, em parte porque os empresários da indústria alimentícia pressionavam pela manutenção da centralização. Em 1988 só 184 municípios faziam parte do programa.

Anos 1990: Quem tem fome tem pressa

O início do governo Collor trouxe mudanças para todas as políticas sociais, assumindo um viés de desresponsabilização do Estado. Ele interrompeu o processo de municipalização do PNAE e nomeou para presidente do Inan um representante da Associação Brasileira da Indústria de Nutrição (Abin). Na metade do mandato, Collor sofreu um impeachment e quem assumiu a Presidência foi seu vice, Itamar Franco.

O programa de alimentação escolar passava por uma crise. Em 1991 surgiram denúncias de desvio de recursos que resultaram na abertura da CPI da Fome. No ano seguinte, só foram ofertados alimentos para 38 dias letivos. O governo federal precisava dar uma resposta. Até porque crescia a mobilização popular em torno da fome – com destaque para a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, liderada por Herbert de Souza, o Betinho.

Muito em função disso, foi criado em 1993 o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O princípio da descentralização voltou a se fortalecer e foi oficializado de vez em 1994, com a Lei nº 8.913. A adesão dos municípios ao programa foi imediata e crescente: no final da década, em 1998, já eram mais de 4 mil. A lei também instituiu a obrigatoriedade de instalação do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) nas unidades federativas, para receber os recursos do programa. Ele é um órgão colegiado de caráter fiscalizador, que tem participação da comunidade escolar.

Em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a FAE foi extinta e suas funções foram incorporadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que até hoje cumpre a função de administrar e normatizar o PNAE.

Anos 2000: A virada

No início da década aconteceram fatos importantes para a história do PNAE, como a retomada do Consea, que havia sido extinto dois anos depois de ser criado, e a criação dos Centros de Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecanes), uma rede de apoio técnico para a implementação do programa, formada a partir de convênios com instituições federais de ensino superior. Mas o que mais marca a trajetória do programa nesse momento é a Lei nº 11.947, publicada em 2009, que proporciona uma ampla reformulação do PNAE.

O texto que deu origem à normativa foi construído a partir de um grupo de trabalho com integrantes do Consea e FNDE. Muitos atores estiveram envolvidos nas negociações por trás da lei. Especialmente organizações e categorias ligadas à execução do programa, como o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e outros.

Alguns dos pontos mais importantes da nova lei são a ampliação do atendimento, incluindo alunos do ensino médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA); o reajuste do valor médio da refeição (usado para calcular os repasses) e a exigência de destinar pelo menos 30% dos recursos financeiros repassados pelo FNDE para a aquisição de alimentos da agricultura familiar. Uma resolução publicada meses depois ainda estabelece que fornecedores provenientes de assentamentos da reforma agrária, quilombolas e indígenas têm prioridade.

2010 – 2020: da terra ao prato

Após a publicação da nova lei foram realizados mais de 20 seminários com gestores públicos de Estados e municípios, para promover uma melhor adaptação ao sistema. Até 2009 o programa havia se expandido em sua execução. Quase todos os municípios e Estados já aderiam ao PNAE. Mas a lei trouxe uma mudança considerável na outra ponta da cadeia: no fornecimento dos alimentos. Ao incluir a agricultura familiar, o grupo dos fornecedores se expandiu, e o processo de execução do programa se tornou mais complexo.

Aos poucos, o percentual de compra da agricultura familiar foi aumentando. Em 2010 foi menos de 5%, mas em 2016 já era de 25%, considerando todo o território nacional. Nos municípios, porém, as realidades são diversas: há os que batem a meta (mais de 2.500, de acordo com dados do FNDE de 2017), os que não batem (mais de 2 mil) e os que não compraram nada da agricultura familiar (mais de 700).

Esse ainda é um dos principais desafios na execução do programa. Somam-se a ele a terceirização, os cortes orçamentários e a falta de reajustes do valor per capita – o último aconteceu em 2017 e desde então o FNDE repassa só 32 centavos para cada refeição oferecida no ensino fundamental, médio e EJA.

Existem duas formas de gestão que podem ser adotadas: a mista e a terceirizada. No caso da gestão mista, a unidade subnacional – denominada no âmbito do PNAE de entidade executora (EEx) – adquire os alimentos não perecíveis e transfere parte dos recursos financeiros para as escolas, que, por sua vez, se responsabilizam pela aquisição dos alimentos perecíveis. Na gestão terceirizada, a EEx elabora o cardápio e contrata empresas especializadas para operacionalizar a alimentação escolar, integralmente ou em parte.

2020: O ano da peste

Quando as infecções por coronavírus começaram a se alastrar, e as escolas foram fechadas, Estados e municípios tinham os caixas abastecidos por recursos do PNAE, mas milhares de estudantes ficaram sem merenda, justamente quando mais precisavam da garantia do direito à alimentação saudável e adequada.

Só em abril o governo federal aprovou uma resolução permitindo que se fizesse a distribuição dos alimentos diretamente às famílias dos estudantes. Depois disso, foram sugeridas mais de 20 emendas parlamentares ao texto. As mais preocupantes tentavam normalizar a distribuição dos recursos da merenda via cartão ou transferir a distribuição dos alimentos a entidades filantrópicas e religiosas.

Quem sofreu com essa história toda foram os estudantes e os agricultores que fornecem para o programa. A experiência do “cartão-merenda”, adotado em alguns municípios, foi um exemplo. Na cidade de São Paulo eram depositados, em média, R$ 55 para alunos do ensino médio e fundamental. Para alunos da educação infantil, R$ 100. Valores que não sustentam nem uma semana de almoço. Para o agricultor, o cartão significa o fim da venda para o PNAE, já que a responsabilidade da compra é transferida do Estado para as famílias. Para piorar, ainda há atrasos na liberação do crédito no cartão, como aconteceu em fevereiro de 2021. As mesmas polêmicas se estendem a outros municípios que aderiram ao modelo. Tanto é que alguns já substituíram o cartão por “kits de alimentação” ou cestas básicas – caso do município de São Carlos (SP), que anunciou a mudança em 2021.

Durante os meses de agosto e setembro, a Articulação do Semiárido (ASA) e a FBSSAN ouviram mais de 160 grupos de agricultores e pescadores que fornecem alimentos através do PNAE no Nordeste: 44% deles não conseguiram vender sua produção para o programa em 2020. Há experiências de municípios que mantiveram a compra e que até aumentaram o volume de alimentos adquiridos da agricultura familiar, mas são exceções, em locais onde há muita mobilização dos agricultores e vontade política dos gestores.

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