por Juliana Dias
Lá se vão 10 meses desde que o congresso nacional autorizou a distribuição dos alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) às famílias de estudantes, mediante a suspensão das aulas. Foram meses de muitos erros e poucos acertos. Meses de aprofundamento de uma crise humanitária que se agrava pela incompetência do atual governo federal em gerenciá-la, com importantes repercussões sobre a gestão da alimentação escolar e, consequentemente, sobre a segurança alimentar e nutricional das mais de 40 milhões de crianças e adolescentes, estudantes das escolas públicas de educação básica.
Adentramos 2021 atropelados pelo aumento dos casos de Covid-19, com novas e mais contagiosas cepas, sob um clima de grandes incertezas sobre a perspectiva de volta às aulas, que deixa muitas dúvidas sobre este retorno, inclusive sobre como acontecerá a alimentação escolar. Vivemos também um período de transição, com a chegada de novos/as prefeitos/as e secretários/as, não necessariamente familiarizados com as complexidades de gestão do PNAE, sobretudo neste momento de crise. Para piorar, paira no ar um clima de insegurança jurídica provocado pela falta de compromisso do congresso nacional com a prorrogação do estado de calamidade pública, que expirou no último dia de 2020, e pela falta de orientações claras por parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE/MEC) sobre as bases legais que respaldam a continuidade da autorização para a distribuição das cestas e as estratégias que podem ser adotadas em modelos híbridos, de aulas presenciais e remotas.
Se em 2020 já foram muitos os estados e municípios que deixaram de distribuir as cestas de alimentos e comprar da agricultura familiar, alegando as dificuldades logísticas e/ou o aguardo da volta às aulas, que dirá agora, diante do contexto acima descrito, e da enorme pressão pela retomadas das aulas na escolas públicas, sem que existam, em boa parte delas, condições adequadas e seguras do ponto de vista epidemiológico e de infraestrutura.
A escola foi uma das primeiras instituições a serem fechadas e a maioria delas não retornou até o presente momento. O retorno às atividades presenciais é essencial e urgente, mas não pode passar por cima da garantia de condições para um retorno seguro. Essa garantia passa pelo controle da pandemia, pela elaboração participativa e democrática de diagnósticos e de protocolos de retorno, pelo financiamento e investimento em infraestrutura que assegure condições materiais de segurança nas escolas. Passa também pela transparência nas políticas e na disponibilização de dados, não só para a construção da reabertura, como também para o monitoramento do andamento dos trabalhos e dos casos de contaminação. E esses elementos são só o início da conversa.
Os direitos humanos são complementares e não devem competir entre si. Isso significa que o Estado não deve relegar à população a decisão entre o direito à educação ou à saúde, ou à alimentação, por exemplo. No debate sobre reabertura das escolas, esse elemento é central: é urgente a volta às aulas presenciais para a garantia da educação, da proteção, da saúde mental, e da segurança alimentar e nutricional, mas em um cenário de falta de segurança sanitária e sem condições de infraestrutura nas escolas, o direito global à saúde de toda a comunidade escolar – especialmente das e dos profissionais da educação e também das famílias e, por consequência, de toda a sociedade – fica comprometido.
Em meio a este dilema da volta às aulas, que acontece em um contexto extremamente desafiador, de agendas negacionistas e anti-direitos por parte do governo federal, de interrupção do auxílio emergencial, de aumento do preço dos alimentos, e iminente aumento da fome e da pobreza, é preciso cuidar do PNAE. Vale lembrar que a restrição alimentar é mais presente nas casas onde há crianças e adolescentes, e que em grande medida dependem da alimentação escolar. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2017/2018 mostrou que pelo menos metade das crianças menores de cinco anos viviam em lares com algum grau de insegurança alimentar, sendo que 7,3% das pessoas com idade entre 5 e 17 anos viviam em domicílios com insegurança alimentar grave. Cabe ainda destacar que a grande maioria dos domicílios com insegurança alimentar grave estão localizados no Norte e no Nordeste, em área rural, sendo mais da metade desses lares chefiados por mulheres.
Em 2020 estivemos de olho na alimentação escolar, por entender que o PNAE era uma das políticas públicas mais potentes que tínhamos nas mãos para enfrentar a fome na pandemia, e uma das poucas que resistiu ao grave desmonte da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). O Congresso Nacional foi ágil na autorização dada para que os recursos do PNAE pudessem ser utilizados na distribuição de kits de alimentos durante o período emergencial, mas não houve nenhum tipo de complementação orçamentária federal, quando se sabe que os custos da oferta de alimentação domiciliar, somados aos gastos logísticos, são muito maiores. Entre 2004 e 2014 o programa seguiu uma trajetória orçamentária ascendente, mas desde então sua execução orçamentária vem passando por um período de queda e paralisação, reduzida de R$ 4,9 bilhões em 2014 para R$ 4 bilhões em 2019. Ou seja, para além da perda ao longo dos últimos seis anos, o governo federal não empreendeu nenhum esforço orçamentário extra no contexto de pandemia, tendo à mão um eficiente instrumento de descentralização de recursos para fazer chegar comida na mesa das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. E, pior, quase colocou em risco o Salário-Educação, principal fonte de financiamento do PNAE, ao apoiar a sua inclusão na cesta do Fundeb. Felizmente, não teve sucesso nessa empreitada, graças aos esforços e pressão da sociedade civil.
Nesse país de enorme dimensão, em cada escola há uma diferente história a ser contada sobre a distribuição das cestas do PNAE durante a pandemia. Estados e municípios demoraram a se mobilizar e dar início à distribuição dos kits. Ainda não há estatísticas oficiais, mas o que se observa é que a distribuição está acontecendo de forma muito desigual por todo país, sem regularidade nem qualidade, com interrupção das compras da agricultura familiar, e ausência de diálogo com os conselhos de alimentação escolar, que seguem fragilizados. Por outro lado, é importante reconhecer que há muitas boas práticas, quando há vontade política e diálogo com a comunidade escolar e a agricultura familiar.
Nas mais diversas regiões, observou-se uma tendência de focalização nos estudantes cujas famílias estão no Cadastro Único das Políticas Sociais ou são beneficiárias do Bolsa Família, quando se sabe que há muita família sendo deixada de fora, dado o enorme aumento da pobreza nos últimos anos e ausência de novos cadastramentos por parte deste (des)governo. Perdeu-se também a dimensão das compras da agricultura familiar e da qualidade da alimentação, logo em um momento em que o Estado brasileiro deveria estar preocupado com o abastecimento alimentar e a boa saúde da população.
A opção de diversos gestores tem sido pela aquisição de alimentos em grandes redes de distribuição e supermercado, deixando à margem os pequenos produtores e os virtuosos circuitos de abastecimento popular que hoje dependem de políticas como o PNAE e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), favorecendo ainda mais a concentração econômica das redes de abastecimento alimentar e das compras públicas, a aquisição de alimentos processados e ultra-processados, e acentuando a exclusão social.
No semiárido brasileiro, a região mais pobre do país, levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Soberania Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e a Articulação do Semiárido (ASA) ouviu 168 grupos produtivos de agricultores familiares e pescadores artesanais fornecedores do PNAE, presentes em 108 municípios da região Nordeste e/ou no Semiárido brasileiro. Pouco menos da metade (44%) destas cooperativas e grupos informais, que até 2019 vendiam alimentos saudáveis e diversificados ao PNAE, não o fizeram em 2020. Em 2019 faziam parte destes grupos pesquisados aproximadamente 4,5 mil produtores de alimentos, que tiveram um rendimento de aproximadamente R$ 27 milhões. Até setembro de 2020, os mesmos grupos venderam o equivalente a apenas R$ 3,6 milhões o que, em grande medida, corresponde a vendas feitas antes das medidas de isolamento social. É renda que deixa de circular entre os/as camponeses, pescadores/as artesanais, assentados/as da reforma agrária, povos indígenas e comunidades quilombolas, e alimentos saudáveis que deixam de chegar a famílias que vivem o flagelo da fome.
Os conselhos de alimentação escolar (CAEs) praticamente não foram escutados, quando poderiam ter atuado de forma estratégica na busca de soluções que atendessem as necessidades de toda a comunidade escolar, inclusive da agricultura familiar. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o CAE realizou um importante levantamento junto aos diretores das escolas, que foi ignorado pela Secretaria de Educação. Tampouco foram consideradas as recomendações do CONSEA/RJ ou da Comissão de Educação da ALERJ. As decisões foram tomadas de forma arbitrária, pouco transparente e insuficientemente regulamentadas, gerando um ambiente de ausência de diálogo, de acordos e de muita incerteza, o que, entre outras coisas, fez com que a distribuição dos kits por muitas escolas não fosse nem mesmo iniciada. A opção do Secretário de Educação foi por embates em redes sociais e não pelo diálogo com a comunidade escolar. Essa situação se repete em muitos relatos, revelando a perda do pouco que existia da cultura e da prática de diálogo e participação social.
Diante desse cenário, é preciso repensar as formas como estão conduzidas essas políticas e redirecionar, para a garantia dos direitos humanos à alimentação e nutrição adequadas e à educação. Por isso, indicamos alguns caminhos.
Recomendações:
- Com a reabertura das escolas e o retorno às atividades presenciais – em contexto sanitário e de infraestrutura seguro – é preciso assegurar que a alimentação escolar seja fornecida a todas/os, mesmo as/os que não voltarão às aulas. As estratégias adotadas devem assegurar o distanciamento social na distribuição e alimentação, assim como todas as medidas de segurança sanitária necessárias. Cabe ao FNDE orientar e, se necessário, emitir nova resolução procedimentos a serem adotados em caso de modelos híbridos, que combinam aulas presenciais e remotas;
- É urgente a retomada das compras da agricultura familiar, o que deve acontecer a partir do diálogo e negociações com as organizações da agricultura familiar para a busca de soluções adequadas ao contexto da pandemia;
- O Congresso Nacional deve se comprometer com o aumento do orçamento do PNAE com base nos valores estabelecidos na proposta de Piso Mínimo Emergencial feita para a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021 pela coalizão Direitos Valem Mais, com o intuito de interromper a deterioração orçamentária acelerada das políticas de saúde, educação e segurança alimentar e nutricional desde 2015. O piso mínimo emergencial para o PNAE proposto para a LOA 2021 é de R$ 5 bilhões. É preciso considerar, em mais médio prazo, o aumento do valor per-capita repassado aos estados e municípios;
- O FNDE precisa reativar o Grupo Consultivo do PNAE no âmbito do FNDE, instância formal de participação social, e as secretarias de educação devem criar as condições necessárias para o devido funcionamento dos CAEs, assegurando a devida transparência e fornecimento de informações necessárias para o controle social;
- O FNDE deve adotar estratégias de sensibilização e capacitação dos novos secretários municipais de educação sobre a gestão do PNAE, de modo a superar a falta de conhecimento dos que chegam, e a insegurança jurídica relacionada às compras da agricultura familiar e à distribuição de cestas autorizada pela Lei nº 13.987/2020;
- O FNDE deve socializar os resultados de pesquisa realizada em parceria com os Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar (CECANE), que tinham como objetivo monitorar a implementação do programa durante a pandemia, e propor soluções de gestão adequadas a esta grave crise humanitária.
A retomada da agenda de garantia de direitos se faz urgente neste país, sob pena de mais e mais mortes. A alimentação escolar deve ser tratada como estratégia primordial no combate à fome, promoção de uma alimentação e nutrição adequadas, e de garantia do direito à educação. São vários direitos, interligados, e que vêm sendo negados a milhões. Isso precisa mudar. Para mobilizar a sociedade e pressionar o poder público é que lançamos o Observatório da Alimentação Escolar. A sociedade civil segue fazendo sua parte, resta aos governos cumprirem seu papel.
Mariana Santarelli é relatora nacional para o direito humano à alimentação da Plataforma DHESCA, membro do núcleo executivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança e Nutricional, representando a instituição no Comitê Gestor do Observatório da Alimentação Escolar. É também pesquisadora do Centro de Referência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESAN/UFRRJ).
Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, representando a instituição no Comitê Gestor do Observatório da Alimentação Escolar. É também jornalista, cientista política e educadora popular, além de doutoranda em ciências com foco em relações internacionais pela USP.