A suspensão ou a irregularidade na execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) no Semiárido, durante a pandemia, trouxe prejuízos à saúde e ao bolso dos/das estudantes e das famílias agricultoras beneficiárias do programa. Do lado de quem consome, a suspensão na oferta de alimentos ou a substituição das refeições por cestas básicas ou pelo cartão alimentação implica na insegurança alimentar e nutricional. Na ponta de lá, as famílias agricultoras perderam toneladas de alimentos produzidos para atender as chamadas públicas não executadas e perderam renda com a suspensão do programa. Como consequência, elas também foram afetadas pela insegurança alimentar.
A garotinha Eloha Penélope da Silva, de 11 anos, cursa o 6º ano do ensino fundamental I na Escola Eloy de Souza, que fica no município de Lajes, na região semiárida do estado do Rio Grande Norte. Ela mora na Fazenda 03 de Agosto, distante duas horas da área urbana. Por isso, durante as aulas presenciais, tomava o café da manhã na escola, às 9h, pois às 5h30, hora em que pegava o transporte escolar, não dava tempo para desjejum.
Com este esquema, a criança fazia quatro refeições ao longo do dia: três na escola e uma em casa, à noite. Com a suspensão das aulas, Eloha perdeu uma refeição, o lanche da tarde e passou a comer “pela manhã, de tarde [almoço] e à noite”, afirma. Durante o período, a redução na quantidade de refeições não foi a única mudança. Nas aulas presenciais, Eloha consumia cuscuz, leite, feijão, arroz, carne, suco de fruta. Já no cardápio de casa, foram introduzidos o biscoito recheado e o refrigerante.
“Eu senti falta da comida da escola. Eu já era acostumada a comer. Senti falta da escola também”, afirma a garotinha na presença da mãe, que, ao fundo, levanta a voz para se fazer ouvir no celular e complementa “seria importante que a merenda fosse garantida, pois de todo jeito a verba vem. O gasto com comida aumentou bastante com ela dentro de casa”, defendeu.
Pesquisa – Eloha é uma das/dos 900 estudantes, que responderam a pesquisa #Contapragente, realizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (OAÊ), espaço que monitora e sensibiliza a população sobre a importância do Pnae, com o intuito de identificar como atuou a alimentação escolar durante a pandemia. Ela figura em meio aos 21% que declararam não ter recebido alimentos ao longo da pandemia. Segundo a pesquisa, 14% receberam cestas básicas ou cartões alimentação e 21% receberam alimentos apenas uma vez.
Em casa, na comunidade rural, Eloha recebe ajuda da mãe para fazer as atividades escolares – Foto: Acervo Pessoal
Além do impacto na segurança alimentar, a pesquisa constatou impactos na segurança nutricional dos/das estudantes pesquisados/as. Fazendo uma comparação entre a composição do cardápio das refeições e os alimentos oferecidos nas cestas, no primeiro caso, foi registrada a presença de 66% de legumes e verduras, enquanto no segundo, apenas 29%. As frutas e sucos in natura estavam presentes em 59% da merenda, mas em apenas 19% das cestas básicas. A carne era oferecida em 72% das refeições. Nas cestas básicas, a proteína animal esteve presente em apenas 23%.
A assessora de Segurança Alimentar e Nutricional do OAÊ, Gabriele Carvalho, explica que o levantamento teve o objetivo de “saber a percepção dos estudantes sobre o Pnae na pandemia, ouvir os sujeitos de direito”. Ela complementa, afirmando que a pesquisa evidenciou o que já se sabia “o direito à alimentação está sendo violado de forma recorrente”, arremata.
Segurança alimentar e nutricional – O Pnae impacta diretamente na condição de segurança alimentar e nutricional das famílias. A estudante do 3º ano do ensino médio, Luana Paula de Lima, do município de Santa Inês, no estado do Maranhão, defende a distribuição constante das cestas básicas.
Com a suspensão das aulas, a família da estudante sentiu o peso da despesa com alimentos e precisou contar com a ajuda das pessoas para se alimentar. “Eu acho que [a entrega de cestas básicas] era para acontecer sempre, pois tem muitos alunos que trabalham para sustentar uma casa, então, já seria para ir para escola, porque a escola ia dar a cesta básica”, defende. Luana quer dizer que a cesta básica daria um suporte aos/as estudantes, que precisam ajudar nas despesas de casa, a se manterem na escola em vez de abandonar os estudos para trabalhar.
Na opinião de Michely Nunes, estudante do 3º ano do ensino médio da Escola Adolfo Ferreira, no município de Acarapé, estado do Ceará, “a qualidade [das cestas] é péssima, e não tem como ser utilizada 100%, pois geralmente a maioria desses alimentos nem se compara aos que eram oferecidos nas escolas.” A quantidade de alimentos oferecidos nas cestas, ainda segundo a estudante, é insuficiente, “não é o bastante para ser utilizada durante 30 dias”, complementa.
A jovem quilombola Maria Eduarda dos Santos, do Quilombo Águas Claras, no município de Triunfo, Semiárido pernambucano, teve as refeições substituídas por um cartão alimentação com um crédito de R$ 50 , que poderia ser utilizado em quatro grandes supermercados do município. Ela, que vive apenas com a mãe, cuja renda é fruto da venda de alguns produtos cultivados na roça e da renda do Bolsa Família, usava o cartão para comprar “leite em pó, bolacha, suco, danone e frutas, umas coisas mais básicas que eu pudesse me alimentar” , informa.
Além de não garantir todas as despesas com a alimentação da estudante, o cartão não permite o consumo dos mesmos alimentos oferecidos na escola. Durante as aulas presenciais, na Escola de Referência Alfredo de Carvalho, a jovem costumava consumir verduras, suco natural, frutas, carne de boi e frango nas três refeições. “O cartão dava uma ajudinha [nas despesas de casa]. Na escola, a gente se alimenta bem, entende? Esse negócio de ajudar os agricultores é bom, é melhor comer na escola mesmo”, defende a jovem, ao saber que o Pnae compra alimentos da agricultura familiar.
Prejuízo de curto, médio e longo prazo – De acordo com a nutricionista, que atua no município de Jacobina, no estado da Bahia, Veranúbia Mascarenhas, em curto prazo, os alimentos ultraprocessados por serem de difícil digestão, sugam os nutrientes presentes no organismo ao longo do processo. Além disso, prossegue a profissional, a Covid-19 é uma doença que tem como porta de entrada principal o intestino permeável, “a alimentação ultraprocessada deixa [o intestino] impermeável. Este intestino não vai absorver os micronutrientes, o que vai comprometer todo o sistema imunológico e esse sistema imunológico comprometido nos deixa vulnerável à Covid”, explica.
A profissional destaca que acompanhou várias pessoas com Covid durante a pandemia, identificando que as/os pacientes que apresentaram sintomas mais graves estavam com o sistema imunológico comprometido. Uma criança precisa de 13 vitaminas e 22 minerais diariamente para se manter saudável.
Um adolescente com idade entre 12 e 16 anos, faixa etária responsável por 64% das respostas da pesquisa, “precisa de uma necessidade calórica absurda, pois ele está fazendo hormônio para o seu desenvolvimento, ele precisa de cálcio para crescer, ele precisa de ferro para ter uma tireoide saudável” , analisa Vera.
A longo prazo, finaliza a nutricionista, o impacto dessa má alimentação será percebida em crianças “com carência nutricional, casos de desnutrição que vão aparecer, déficit de massa muscular”, conclui. Na volta às aulas, essas carências devem impactar na qualidade da atenção dos/as estudantes exatamente no momento no qual precisam recuperar as lacunas deixadas pela suspensão das aulas.
Cerca de 40 toneladas de polpas de frutas da Cooperativa Grande Sertão foram perdidas com a suspensão do Pnae – Foto: Reprodução canal Grande Sertão no Youtube
Sofrendo duplamente – Entre 30 e 40 toneladas. Essa foi a quantidade de polpa de frutas que a Cooperativa Grande Sertão, sediada em Montes Claros, região Norte de Minas Gerais, perdeu devido às chamadas públicas do Pnae que foram abertas, mas não foram executadas. O gerente Administrativo – Financeiro da Cooperativa, Arlúcio Almeida, afirma que o prejuízo ocorreu “porque muitas prefeituras que continuaram oferecendo alimentação escolar, não consideraram a polpa de fruta produto de primeira necessidade e a excluíram das refeições”, explica.
O município vizinho, Nova Lima, teve uma visão diferente dos demais e permaneceu comprando o produto. Além disso, a Fundação Banco do Brasil encomendou 7 toneladas do produto para incluir em cestas básicas fornecidas, por meio de um projeto social. Com isso, as vendas da Cooperativa para o Pnae, que antes correspondia a 70% da receita total, caíram para 15%. Para compensar a falta, as famílias investiram na produção de óleo de buriti, vendidos para empresas de cosméticos.
A suspensão do Pnae prejudica duplamente as famílias rurais. Com a redução da renda, causada pela suspensão das vendas, muitas famílias passam a sofrer com a insegurança alimentar, uma vez que não podem comprar alguns itens de alimentação. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigissan), de um total de 19 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, 13,08% estão na região Nordeste e 12% vivem em residências rurais.
Para além da pandemia – Boa parte da ameaça ao direito humano à alimentação tem origem nos interesses econômicos dos setores do agronegócio e da indústria de alimentos. Este último setor, por exemplo, segundo dados do economista e pesquisador Bruno Carazza, autor do livro Dinheiro, Eleições e Poder, é o segundo setor que, em 2014, teve uma participação maior em doações de campanha, mais de 20% do que no Produto Interno Bruto (PIB), cerca de 8%.
O investimento na eleição de candidatos comprometidos com os interesses do setor do agronegócio e da indústria alimentícia é importante para ter acesso a benefícios como aprovação de projetos de lei ou emendas parlamentares, favoráveis ao ramo. Segundo Carazza de um total de 3.806 emendas setoriais apresentadas no Congresso Nacional, em 2014, 2.087, ou seja, 54,8% são de autoria de parlamentares que receberam doações de setoresaos quais as emendas estavam destinadas.
Deputado Federal pelo PT de Santa Catarina, Pedro Uczai critica projetos de lei apresentados sem discussão sobre segurança alimentar e nutricional – Foto: Arquivo do mandato do Deputado Pedro Uczai
Lobby no Congresso Nacional – Nessa direção, vários projetos de lei, que tramitam no Congresso Nacional, preveem mudanças estruturais no Pnae em benefício dos setores produtivos. Um bom exemplo é o PL 3.292/2020, de autoria do deputado e líder do governo na Câmara, Major Victor Hugo do PSL de Goiás, estado que é o quarto maior produtor de leite do Brasil, segundo dados da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), destina 40% do orçamento do programa para a compra de leite fluído.
O relator do projeto na Câmara, o deputado Carlos Jody do PSL (RJ) partido ao qual o atual presidente estava vinculado nas eleições de 2018, deu parecer favorável ao projeto, porém, na Comissão de Educação em parecer emitido no dia 5 de maio de 2021 e assinado pelo deputado Rogério Correia (PT) do estado de Minas Gerais, rejeitou a proposta. Para o deputado Federal de Santa Catarina e coordenador do Núcleo Agrário do PT na Câmara dos Deputados, Pedro Uczai, essa movimentação política representa a disputa dos setores do agronegócio e da indústria de alimentos pelo orçamento público.
“Eu não tenho dúvida! São parlamentares que têm compromisso com setores econômicos. Têm um apelo dos setores econômicos, que produzem leite para que se consuma esse produto, produzido em apenas uma região do país, para atender aos interesses daquele setor produtivo, para atender a relação política desses parlamentares”, explica.
Se por um lado a Emenda 95, conhecida como a Emenda do Teto de Gastos, congela os investimentos, por outro, o Pnae permite, a cada ano, a execução de um orçamento na ordem de R $4 bilhões na execução de atividades. “O que é que o agronegócio e a indústria de alimentos perceberam? Disputar passo a passo o orçamento do Governo Federal. Portanto, de um lado recebem incentivos em redução ou isenção de tributos, e do outro, abocanham o orçamento do Pnae”, explica
Alimentos típicos do Semiárido ricos em nutrientes e que devem ser servidos na merenda escolar – Foto: Acervo ASA Brasil
O que fazer – Nos municípios, o jogo de interesses entre política e interesses econômicos no Pnae também é uma realidade. De acordo com a nutricionista Veranúbia, “às vezes, os nutricionistas não têm autonomia, pois as prefeituras fazem as suas composições, e a gente fica sem alternativa. Eu já trabalhei em locais onde eu queria tirar a fritura da merenda, mas a prefeitura queria comprar óleo porque tinha contato com alguém que vendia o óleo, é bem complicado” , pondera.
À medida em que evidenciou a importância da alimentação escolar, a pandemia também acentuou a violação desse direito humano, trazendo consequências imediatas e futuras para quem as consome. A alimentação escolar precisa atender às necessidades do seu público e não às commodities e os setores econômicos. Esta afirmação está presente no Artigo 2, inciso 1 do Pnae que, em linhas gerais, resume a missão do programa na promoção de uma alimentação saudável e adequada voltada ao crescimento e o desenvolvimento dos alunos e a melhoria do seu rendimento escolar.
“O Pnae precisa funcionar da forma como foi pensado. Sendo comprado não só 30%, mas 100% da agricultura familiar agroecológica. Criança e ninguém no planeta tem que comer comida com veneno. A criança precisa de 13 vitaminas e essas vitaminas estão na comida de verdade. Na abóbora, na macaxeira, no ovo, na Palma, no Licuri, um coquinho, que é a proteína, a gordura do Semiárido”, conclui Veranúbia.
Fonte: Matéria publicada originalmente no site da ASA – Articulação Semiárido Brasileiro.