Nos últimos anos, políticas de incentivo à agricultura familiar são sistematicamente esvaziadas, a ponto de serem consideradas lendas do passado – é o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa de Cisternas e da reforma agrária. Uma das únicas políticas que sobrevive a essa avalanche de desmontes é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), a duras penas. Pelo menos 30% dos recursos da merenda têm que ser destinados à compra direta da agricultura familiar – o que garante alimentos saudáveis e produzidos localmente para milhões de estudantes do país e também representa uma importante fonte de renda para as famílias agricultoras. Antes da pandemia, já não eram todos os municípios do Brasil que seguiam a regra, mas, com o fechamento das escolas, muitos gestores pararam de comprar da agricultura familiar.
“Os elos da cadeia se partiram. Para onde você olha, não tem apoio”, diz a apicultora Suely Vasconcelos, presidente da Associação Sol Nascente, de Vera Cruz (BA).
É impossível cravar qual é a real situação do país, porque, desde 2017, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) não divulga dados sobre as compras da agricultura familiar nos estados e municípios. Porém duas organizações da sociedade civil, a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Fbssan), fizeram um levantamento, no semiárido, em 2020, que ajuda a entender o tamanho do impacto desse retrocesso.
Em 2019, os 4,5 mil produtores de alimentos, vinculados aos 168 grupos produtivos que participaram da pesquisa, somaram R$ 27 milhões em vendas para a merenda. Até setembro de 2020, os mesmos grupos tinham vendido apenas R$ 3,6 milhões. Na maior parte dos casos, as prefeituras chegaram a firmar contratos com os grupos produtivos, contudo não os executaram. O resultado foi que mais da metade dos agricultores tiveram que jogar comida fora. Caso da Francisca, de Remanso (BA). Ela contou, no Prato Cheio, que a associação de pescadoras da qual faz parte jogou fora mais de 200 quilos de peixes que iriam para a merenda no ano passado.
Por enquanto, não há dados referentes a 2021, mas o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) está fazendo uma pesquisa a respeito, que deve ser publicada este ano. “A ideia é que a gente consiga abarcar produtores de todas as regiões, que a gente consiga ter um retrato mesmo, nacional”, afirmou Gabriele Carvalho, assessora de segurança alimentar e nutricional do Observatório. “A gente está animada pra conseguir o maior número de respondentes possível, mas não está tão animada assim com as respostas que vão vir, porque não devem ser coisas muito animadoras. A situação está bastante precária e a gente sabe disso em função desse histórico [do ano passado]”. Ela ainda lembra de um aspecto importante desse retrocesso: “Isso expõe o agricultor e a família do agricultor a uma condição de insegurança alimentar também, e, em um contexto em que a gente tem um agravamento da fome no país, é um fator determinante”.
Diante desse cenário, O Joio e O Trigo conversou com produtores de todos os dez estados do semiárido – Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. O que encontramos é o resultado de um ano traumático, que parece que não acabou.
“Os elos da cadeia se partiram. Para onde você olha, não tem apoio.”
Para além do impacto na renda das famílias, houve outro: na capacidade produtiva da agricultura familiar. Como no ano passado os produtores tiveram prejuízo, neste ano muitos já planejaram uma produção menor para evitar desperdício. Além disso, as compras institucionais são importantes para dar segurança e apoio às cooperativas – como os contratos com o poder público têm um volume e valor maiores, se comparados à venda direta ao consumidor em uma feira, os grupos conseguem investir mais na produção, por exemplo, comprando ferramentas de trabalho melhores ou investindo no processamento dos alimentos in natura, que têm um maior valor agregado. Sem esse canal de comercialização, as cooperativas ficaram fragilizadas.
Em geral, o Estado demorou a publicar os editais de chamada pública para aquisição de alimentos da agricultura familiar, tanto em 2020 quanto em 2021. Isso, quando publicou. Até hoje, há famílias agricultoras sem conseguir colocar comida na mesa da escola. Pessoas que já forneciam alimentos para a merenda havia anos e não se lembram de um momento tão crítico como este. Clique aqui para ver o mapa no site da Joio e o Trigo.
Matéria publicada originalmente no site do Joio e o Trigo com o apoio da FIAN Brasil.