Entendemos, aqui em O Joio e O Trigo, que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é a política pública com maior potencial de combate à fome e, ao mesmo tempo, de garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável no Brasil.
Um olhar honesto para a história do programa mostra – apesar de uma trajetória acidentada por obstáculos como a ditadura militar e governos de viés conservador que vieram na esteira do regime autoritário – uma evolução importante até meados da década passada. De uma campanha pela alimentação escolar criada em 1955 a partir dos estudos do médico, nutrólogo e pesquisador pernambucano Josué de Castro, autor do livro Geografia da Fome, o Pnae se estruturou e é o mais longevo programa do mundo presente em sistemas de alimentação educacionais.
A relevância também se comprova no número de estudantes alcançados. Mais de 40 milhões, em 5.570 municípios, conforme informações oficiais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia do governo federal.
No entanto, não é possível para nós continuar a falar só de bons números. A relevância do programa também deve ser mostrada na ausência do Estado, no abandono. Afinal, o maior compromisso do jornalismo é com a realidade e a democracia.
E a verdade aponta que, nos últimos anos, desde que Michel Temer ocupou a presidência da República, entre 2016 e 2018, a situação recente do Pnae passou a preocupar.
Em 2018, ano da eleição da tragédia fascista que atende pelo nome de Jair Bolsonaro, Temer já preparava terreno para debilitar programas voltados à agricultura camponesa. Entre eles, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), Habitação Rural, a obtenção de terras para reforma agrária e o Pnae.
As medidas atingiram os orçamentos – a ponto da maioria desses programas receberem, em 2018, recursos consideravelmente menores do que em 2015 – ou em mudanças de regras na forma de aquisição, caso do Pnae.
No embalo, muitos gestores municipais deixaram de cumprir regras ligadas ao programa. Foi o caso do atual governador paulista João Dória (PSDB), prefeito de São Paulo à época, que decidiu de forma autoritária mudar os critérios e excluir famílias agricultoras gaúchas do fornecimento para a maior cidade brasileira, num óbvio e estúpido movimento partidário para atingir o MST no Rio Grande do Sul, que vendia toneladas de arroz orgânico para a prefeitura paulistana via Pnae.
Então, veio o dia 1 de janeiro de 2019. E a tragédia e o horror assumiram a presidência do país. Em 2020, mais precisamente em março, a monstruosidade recebeu reforços: a pandemia do novo coronavírus, responsável por mais de 600 mil mortos no Brasil (casos notificados, é bom lembrar).
Como revela a repórter Mylena Melo, em trabalho realizado para o Joio em fevereiro deste ano: “Quando as infecções por coronavírus começaram a se alastrar e as escolas foram fechadas, estados e municípios tinham os caixas abastecidos por recursos do Pnae, mas milhares de estudantes ficaram sem merenda, justamente quando mais precisavam da garantia do direito à alimentação saudável e adequada. Só em abril, o governo federal aprovou uma resolução permitindo que se fizesse a distribuição dos alimentos diretamente às famílias dos estudantes. Depois disso, foram sugeridas mais de 20 emendas parlamentares ao texto. As mais preocupantes tentavam normalizar a distribuição dos recursos da merenda via cartão ou transferir a distribuição dos alimentos a entidades filantrópicas e religiosas”.
Quem mais sofre nesse cenário são os estudantes e familiares, muitos passando fome, e os pequenos agricultores que fornecem para o programa, que viram apodrecer alimentos cultivados em 2020 e hoje enfrentam o medo de produzir. Há, ainda, os que abandonaram o campo para sobreviver de “salários” saídos de subempregos.
Não esqueçamos: a economia rural brasileira não começa e acaba no agronegócio. A participação da agricultura familiar no PIB era estimada em aproximadamente 3,5% antes da pandemia. Além disso, ainda emprega 10,1 milhões (67%) de todo o pessoal ocupado no campo e 23% da produção agropecuária do país. É a base econômica de 90% dos municípios com até 20 mil habitantes. Portanto, fundamental para esses pequenos territórios.
Não bastassem esses motivos para afirmar a relevância do Pnae, vale ressaltar que o programa prevê, anualmente, o total de R$ 4 bilhões em recursos repassados pelo governo federal, o que, evidentemente, desperta interesses nada nobres de megacorporações alimentícias e do complexo agroindustrial (vulgo, agronegócio).
É por isso e mais um tanto que, com o apoio da Fian Brasil, a equipe do Joio lança este especial que traz histórias de abandono, mas, também, de luta. Seja nos municípios do semiárido brasileiro, entre as mulheres camponesas ou os estudantes e agricultores familiares.
Essencial recordar que já temos conteúdos publicados no âmbito dessa parceria, em formatos de linha do tempo, entrevista e dois episódios do podcast Prato Cheio.
E aguardem: em breve, outros materiais sobre o tema virão com bastante força, investigação, aprofundamento e diversidade.
ALIMENTAÇÃO ESCOLAR EM RISCO NA CAÓTICA VOLTA ÀS AULAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS
Descaso com recursos do Pnae foram comuns durante meses de escolas fechadas; agora, alimento escolar serve até como chantagem para atrair estudantes
MICHELA CALAÇA: “O PNAE COMPRA A COMIDA DA CAMPONESA E DÁ DE COMER PARA A FAMÍLIA DELA AO MESMO TEMPO”
Gestora e militante pela autonomia das mulheres do campo fala do “deserto” de políticas públicas e rejeição do governo federal à agricultura das camponesas; risco se estende à alimentação escolar
MAPA DO ABANDONO DA AGRICULTURA FAMILIAR
Há mais de um ano, municípios não compram alimentos da agricultura familiar para a merenda escolar no semiárido brasileiro; má gestão do governo Bolsonaro piora a situação
Matéria publicada originalmente no site do Joio e o Trigo com o apoio da FIAN Brasil.