Por Yuri Simeon
Do Observatório da Alimentação Escolar
Você já viu alguma marca da indústria de alimentos patrocinar atividades, promover eventos ou fornecer materiais escolares e outros itens dentro do ambiente escolar? Essas práticas podem parecer apenas “ações filantrópicas ou sociais”, mas na realidade configuram conflito de interesse na execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Para ajudar a identificar, prevenir e explicar os riscos deste tipo de prática, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) lançou uma nota técnica sobre o tema.
A nota técnica do FNDE cumpre um importante papel ao demarcar a necessidade de se combater os conflitos de interesse no PNAE, como explica Vitória Moraes, nutricionista e analista do projeto de alimentação da ACT Promoção da Saúde.
“A nota técnica é um avanço em, antes de tudo, reconhecer situações de conflito de interesse como um problema, uma ameaça não só à saúde dos alunos, mas também à transparência dos processos políticos e à autonomia e independência dos órgãos públicos. Com ela, é possível estabelecer e ampliar o debate sobre a problemática do conflito de interesse nas mais diversas esferas públicas. O documento é um marco que traz toda a comunidade escolar para o debate, se estendendo dos gestores públicos, a conselheiros, nutricionistas e professores, e promove uma mobilização conjunta para a proteção do ambiente escolar contra os interesses comerciais de corporações cujos produtos são prejudiciais à saúde”, analisa.
O conflito de interesse é uma situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, comprometendo o interesse coletivo ao influenciar, de maneira imprópria, o desempenho de políticas públicas. A alimentação escolar da rede pública de ensino no Brasil é objeto de conflito de interesses desde a década de 1950. Isso porque o PNAE alimenta, atualmente, mais de 40 milhões de estudantes todos os dias em todo o Brasil, além de influenciar os hábitos alimentares de gerações de brasileiros.
De acordo com a nutricionista, “situações de conflitos de interesse na execução do PNAE configuram uma ameaça à saúde das crianças e adolescentes contemplados pelo programa, uma vez que pode favorecer a introdução de alimentos ultraprocessados, que por sua vez são contra-indicados pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, especialmente para crianças menores de 2 anos. O favorecimento de determinados atores do setor privado também implica no ofuscamento de outros participantes dos sistemas alimentares, geralmente com menos poder político e econômico, como é o caso de agricultores familiares, especialmente os das comunidades tradicionais. Situações que comprometem a transparência dos processos de compras e licitações públicas.”
Marketing no ambiente escolar
Por trás dessas aparentes ações sociais está uma tática muito utilizada pela indústria alimentícia para promover o marketing dentro do ambiente escolar. Essas ações servem para os fabricantes de alimentos ultraprocessados atraírem crianças e jovens para suas marcas.
Isso acontece com doações de recursos para as escolas, através das quais as companhias divulgam sua marca e/ou seus produtos em equipamentos e instalações escolares. Isso atrapalha o desenvolvimento de políticas e programas de alimentação e nutrição adequadas que possam contribuir para a formação de hábitos alimentares mais saudáveis e fomentando sistemas alimentares sustentáveis.
“É preciso destacar que a Interferência da indústria de alimentos ultraprocessados na escola não é apenas propriamente no abastecimento da alimentação escolar, seja pelo próprio PNAE ou por cantinas, mas também em práticas pedagógicas, aproveitando-se da vulnerabilidade das escolas, especialmente as públicas. A indústria promove campeonatos, financia espetáculos e estimula desafios de forma a difundir suas marcas persuadindo toda a comunidade escolar sobre o que é alimentação saudável. Portanto, é preciso também avançar na regulação da presença da indústria na escola garantindo que marketing e publicidade não sejam confundidos com filantropia”, aponta Vitória.
Qual o papel da educação alimentar neste casos?
Para se ter um ambiente escolar protegido contra conflitos de interesse é importante conscientizar estudantes e toda a comunidade escolar sobre os riscos dos alimentos ultraprocessados, quais são as diretrizes do PNAE e a importância da alimentação escolar adequada nas escolas públicas enquanto um direito. A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no ambiente escolar é a ferramenta para se realizar esse processo de conscientização.
“A Educação Alimentar e Nutricional faz com que os indivíduos questionem e os estimula a participar ativamente de todas as etapas que contemplam a alimentação, se estendendo, inclusive, sobre o entendimento sobre sistemas alimentares, cadeias produtivas e escolhas alimentares. Desta forma, a EAN aparece como uma ferramenta com potencial de despertar o questionamento dos indivíduos acerca dos processos que envolvem a alimentação, além de consolidar a compreensão de uma alimentação adequada, saudável, sustentável e justa”.
Como identificar e coibir conflitos de interesse?
Para apoiar gestores, profissionais, conselheiros e demais atores do PNAE a identificar situações de conflito de interesses, a nota técnica sugere questionários que tem como objetivo auxiliar a identificação e a prevenção de conflito de interesses por meio de perguntas orientadoras para embasar o processo de decisão de envolvimento e/ou parcerias com agentes externos.
A nota técnica também aponta exemplos de conflito de interesses durante a execução do PNAE para se prevenir situações do tipo. Alertando também para situações que muitas vezes passam despercebidas por não possuir ligação direta com a alimentação propriamente dita, como é o caso de patrocínio de ações de atividade física, de hortas escolares e afins.
O documento aponta que é uma responsabilidade dos gestores públicos garantir escolas protegidas de ações prejudiciais à saúde dos estudantes, evitando a influência da indústria de alimentos ultraprocessados por meio de vantagens indevidas. E propõe uma estratégia de prevenção e mitigação, também sinalizando o aprimoramento das medidas de prevenção.
Entre as recomendações estão: não realizar ações no ambiente escolar em parceria com fabricantes/empresas de ultraprocessados e outros produtos prejudiciais à saúde; não distribuir amostras grátis e/ou brindes de alimentos ultraprocessados; não promover visitas escolares às fábricas desses produtos; proteger o ambiente escolar de doações de alimentos ultraprocessados; e impedir marketing no ambiente escolar através de doações.
Para saber mais
O Dossiê Big Food: Como a Indústria Interfere em Políticas de Alimentação, produzido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a ACT – Promoção da Saúde, aprofunda o debate e traz exemplos de casos de conflitos de interesse.
Entre os exemplos está o PL 3292/2020, apresentado pelo deputado Major Vitor Hugo, após pressão de grandes grupos produtores de leite para que o FNDE destine 40% dos recursos para a aquisição de leite fluído. O PL também retira o ponto que confere prioridade na compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar e comunidades tradicionais.
Neste exemplo, uma decisão guiada por interesses secundários pode significar uma ameaça à subsistência dos demais atores do sistema alimentar, além de minar outros aspectos relevantes da alimentação escolar, como a adequação à cultura e à biodiversidade alimentar local e o fomento à sistemas alimentares mais sustentáveis, justos e nutricionalmente adequados – que são diretrizes do PNAE.
E a cartilha Prevenção e Gestão de Conflitos de Interesse em Programas de Nutrição no Âmbito Nacional, organizada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), apresenta o debate realizado em organismos internacionais de saúde sobre a necessidade de se identificar e prevenir conflitos de interesse em políticas públicas como uma ação objetiva para a promoção da saúde.