Por Yuri Simeon
Do Observatório da Alimentação Escolar
Nesta quinta-feira (24) foi publicado no Diário Oficial da União a Lei nº 14.660, que determina a priorização de grupos formais e informais de mulheres da agricultura familiar na aquisição de gêneros alimentícios no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e estabelece que pelo menos 50% das vendas das famílias produtoras deverão ser feitas no nome das mulheres. A lei, que altera a Lei do PNAE, foi sancionada na véspera (23) pelo vice-presidente Geraldo Alckmin.
O “projeto reconhece o importante papel da mulher como mantenedora do núcleo familiar, principalmente, diante de condições materiais precárias, quando revela sua capacidade de tomar as decisões econômicas mais eficientes em prol da família”, descreve o Relatório Legislativo da Câmara dos Deputados. O texto original é da senadora Ana Rita (PT-ES).
Atualmente o PNAE atende diariamente mais de 40 milhões de estudantes da rede pública de ensino de todos os municípios brasileiros. Entre as diretrizes do programa está a obrigatoriedade de se comprar, ao menos, 30% dos alimentos vindos da agricultura familiar – priorizando povos indígenas, comunidades tradicionais, áreas de reforma agrária e, a partir de agora, mulheres camponesas.
Com essas diretrizes, o PNAE é uma referência internacional de política pública no combate à fome e à desnutrição de crianças e adolescentes, com a promoção da alimentação adequada e saudável e o desenvolvimento local sustentável.
Visibilizar as mulheres na Agricultura Familiar
Imagine uma situação onde mulheres desempenham diferentes papéis como pescadoras, agricultoras, artesãs, entre outras funções no ambiente rural, mas quando perguntadas sobre qual a sua profissão, a maioria afirma ser “dona de casa”. “É esse o nosso universo”, descreve Jaciara Ladislau Leobino, agricultora familiar do município de Sento Sé (BA).
Jaciara faz parte da Rede Mulher no Sertão do São Francisco, rede que organiza mais de 300 mulheres no território que abrange 10 municípios. A rede surgiu na década de 80 para combater casos de violência contra a mulher e hoje organiza mulheres do campo com atividades de formação e geração de renda.
Entre os alimentos produzidos por essas mulheres estão diversas hortaliças como alface, couve, rúcula e tomate cereja. Frutas como mamão, banana, uva e abacaxi. Também há a produção e beneficiamento de umbu e do maracujá da caatinga. E a linha de produção da mandiocultura, que envolve desde a venda da raiz da mandioca até a produção de biscoitos e bolos. Todos esses itens são agroecológicos e, em alguns casos, com certificação de produção orgânica.
Em Sento Sé, 17 mulheres deste grupo realizam vendas para o PNAE. Os editais são de até R$15 mil anuais, algumas delas já venderam mais de R$ 8 mil para a alimentação escolar neste ano.
Esse processo também é fruto da organização dessas mulheres, visto que antes apenas os homens possuíam Declaração de Aptidão (DAP) ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “A gente faz a luta no território para que as mulheres passem a ser a primeira titular da DAP, para acessar essas políticas públicas para a comercialização”, explica Jaciara.
A agricultora celebra a priorização das mulheres nas aquisições do PNAE e aponta a necessidade de se cobrar para que a medida seja efetivada. “Foi aprovada essa determinação de priorizar as mulheres e vamos poder reivindicar da prefeitura a inclusão de mais mulheres. É o que a gente quer. É a inclusão de mais mulheres dentro desses projetos institucionais, tanto no PNAE quanto no PAA (Programa de Aquisição de Alimentos)”.
Ela destaca que essas políticas devem estar atreladas a outras medidas, como a ampliação do programa de cisternas, indispensáveis para o fortalecimento da agricultura familiar no semiárido. E a estruturação das feiras de rua, que possibilitam às agricultoras vender a produção excedente, garantindo “dinheiro rápido e direto para as mulheres, com menos burocracia”.
Por fim, Jaciara denuncia que ainda existem muitas barreiras nas vendas para o PNAE. “A primeira coisa é o edital, que às vezes não sai. Não pedem [no edital] o produto que as mulheres têm, mas pedem o outro produto de fora do território. E [as autoridades públicas] precisam entender que os produtos são sazonais. Não vai ter aquela mesma produção o ano todo”, conclui.
As queixas sobre os desafios impostos pela gestão pública também são compartilhadas por Sônia Costa, agricultora familiar na Comunidade Serra dos Morros, no município de Francisco Santos (PI), e coordenadora do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores).
Ela denuncia que hoje uma das principais barreiras para as mulheres camponesas acessarem os mercados institucionais é o “descumprimento da lei nos municípios, porque não é quem produz que vende, mas sim quem o poder municipal quer. Precisamos pautar o cumprimento da Lei do PNAE, pois é o que está mais perto de nós do campo”, enfatiza.
Ela destaca a importância da nova medida para a “valorização ao trabalho e à produção das mulheres, porque na ação concreta quem organiza as vendas são as mulheres, tanto para o PNAE, como para as feiras”, descreve.
Combater a desigualdade de gênero
Vilênia Aguiar, assessora da Secretaria de Mulheres da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), aponta que a nova lei se insere em um contexto de desigualdade de gênero no campo.
“Elas vivem as piores condições de acesso. Se a gente pegar no geral a terra, água, renda, bens comuns, a maioria das mulheres tem pouca área de terra para trabalhar, a maioria tem até dez hectares. Poucas são proprietárias de terra e a maioria destes estabelecimentos, quase 90%, não recebe assistência técnica”, afirma.
A assessora analisa que a medida representa um marco no enfrentamento às desigualdades de gênero no campo e na venda para os mercados institucionais.
“[Essa lei] tem uma dimensão de diminuir essa desigualdade do ponto de vista econômico, social e político. Esse crescimento [do protagonismo feminino] é importante para fazer frente às desigualdades de gênero. Contribui no sentido de conquistar uma autonomia financeira a partir do seu próprio trabalho. É uma valorização e reconhecimento do trabalho das mulheres agricultoras. Acessar o PNAE aumenta a representatividade e participação em um espaço que é predominantemente masculino. O corpo das mulheres não cabem [nestes espaços]. Elas têm que resistir para fazer parte desse mercado. Acho importante e indica a diminuição da desigualdade”, enfatiza.
Em contraposição a essa desigualdade, Vilênia destaca o papel feminino na produção de alimentos de maneira sustentável. “As mulheres agricultoras familiares do campo, da floresta e das águas são responsáveis pela alimentação da família e da comunidade, desempenham um papel importante na preservação da biodiversidade e fundamental para a segurança alimentar e a produção de comida de verdade”.
Ela também aponta que essa medida, uma das bandeiras de luta da Marcha das Margaridas deste ano, traz reflexos positivos para a vida das mulheres e serve de exemplo para outras políticas públicas. “O acesso ao PNAE pode melhorar concretamente [a vida das mulheres] reduzindo esses preconceitos que existem, barreiras que existem e que impedem a plena realização da vida das agricultoras. É importante que as políticas públicas levem em conta o desenho da política, levem em conta essas questões. Se quiserem fazer realmente políticas que enfrentem as desigualdades, isso é importante”, finaliza.