Por Luana de Lima Cunha e Yuri Simeon
Do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
Localizada no município de Salgueiro, sertão de Pernambuco, a 550 km da capital Recife, a Comunidade Quilombola Conceição das Crioulas é referência nacional por ter a educação como pauta prioritária na construção política da comunidade. Outro destaque é a organização da agricultura familiar local com vasta produção agroecológica. A experiência da comunidade quilombola fará parte do Guia sobre Alimentação Escolar Quilombola, elaborado pela CulinAfro, com lançamento para o primeiro semestre de 2024
Em um território de quase 17 mil hectares, no quilombo vivem cerca de 4 mil pessoas divididas em 16 núcleos populacionais, os “sítios”. A comunidade se organiza através da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC), composta por 10 associações de produtores e trabalhadores rurais dos sítios pertencentes à comunidade. Na produção da comunidade se destacam o artesanato e o forte vínculo com a produção de umbu.
Entre as conquistas da luta por direitos estão a primeira biblioteca afro-indígena do Brasil e quatro escolas quilombolas no território, atendendo do ensino fundamental ao médio. Com a implementação de uma educação específica e diferenciada – a Pedagogia Crioula – as escolas contam com um quadro escolar 100% qualificado e quilombola. A partir de concursos públicos específicos para a categoria quilombola, é garantido que todas as contratações sejam preenchidas pela população da comunidade, desde as vagas de vigilantes até para a gestão das escolas.
História e desafios da Comunidade
Com mais de 200 anos de existência, documentos oficiais e a tradição oral preservada e contada pelos mais velhos relatam que a história da comunidade se inicia com a chegada de seis mulheres negras livres, as crioulas, à localidade aproximadamente no final do século XVIII. Através da fiação do algodão, produção de lavouras e artesanato elas conseguiram comprar as terras em 1802. Ainda hoje a comunidade é reconhecida pela forte tradição de produção do seu artesanato com algodão, com o caroá (planta típica da caatinga) e as cerâmicas em barro.
O nome do quilombo carrega a importância destas mulheres na conquista do território, junto à devoção, também trazida por elas, à Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem chegou ao local juntamente com as fundadoras.
No ano 2000 Conceição das Crioulas recebeu um primeiro título de suas terras por meio da Fundação Cultural Palmares, mas ocupantes externos não foram retirados e um novo processo foi aberto em 2004 no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) – processo ainda em andamento em 2023. A comunidade reivindica um território de aproximadamente 17 mil hectares, parte dele já conquistado com a desapropriação de fazendas no interior do território quilombola, priorizando os sítios mais próximos das duas principais vilas da comunidade.
Apesar das conquistas, em 2004 a sede da associação quilombola foi incendiada como forma de intimidação e ainda hoje existem conflitos com áreas do território sob posse de fazendeiros que, apesar de receberem indenizações do processo de desapropriação, insistem em permanecer nas áreas, realizando ameaças contra a população quilombola local.
Outro grande desafio da comunidade está relacionado às constantes situações de insegurança hídrica, que dificultam a dinâmica das casas, afazeres domésticos, funcionamento das escolas, a produção de alimentos e a criação de animais. A insegurança hídrica é uma violação do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (DHANA), influenciando diretamente a soberania e segurança alimentar e nutricional da comunidade.
O sertão é caracterizado por grandes períodos de estiagem, que os saberes quilombolas conseguem contornar com tecnologias sociais – como os caldeirões e açudes – utilizados para o plantio e a criação de animais. Porém a ausência de água potável nas torneiras da comunidade tem ocorrido pela omissão do poder público. “A conta chega todo mês, mas a água, não”, relatam as quilombolas.
Guia sobre Alimentação Escolar Quilombola
Em outubro deste ano, o grupo de pesquisa e extensão CulinAfro*, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), visitou a Comunidade Quilombola Conceição das Crioulas como parte do processo de pesquisa e desenvolvimento do Guia sobre Alimentação Escolar Quilombola, com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2024.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) fornece alimentação escolar para estudantes da educação pública básica de todos os municípios brasileiros, incluindo comunidades quilombolas. A legislação do PNAE possui orientações sobre a adequação cultural do cardápio escolar às especificidades culturais das comunidades quilombolas.
O guia pretende mapear experiências de alimentação escolar quilombola, como a de Conceição das Crioulas, para traçar um panorama sobre o tema. Coordenado pela professora Rute Costa, nutricionista e doutora em Educação em Ciências e Saúde, o grupo idealizador da proposta é composto por estudantes extensionistas de nutrição, gastronomia, biologia, enfermagem e medicina, nutricionistas, residentes em saúde, mestrandas, doutoras e pesquisadoras.
Integrante do ÓAÊ, Luana de Lima Cunha é nutricionista, especialista em Saúde da População do Campo e pesquisadora do CulinAfro. Segundo ela, o Guia de Alimentação Escolar Quilombola “é uma escrita coletiva, juntamente aos atores sociais do PNAE, comunidades e lideranças quilombolas”. A pesquisadora destaca a relevância do guia diante da escassez de materiais que abordem sobre alimentação, quilombo e ambiente escolar. Para ela, o material poderá subsidiar ações condizentes com as diretrizes do PNAE, a partir das realidades dos territórios.
“É importante ressaltar que não existe uma cozinha única ou uma única cultura alimentar quilombola, são mais de 1,3 milhão de quilombolas no Brasil segundo o IBGE. Cada comunidade quilombola com seus modos de vida únicos. Esperamos que o Guia desmistifique a ideia de um padrão e ajude no diálogo das entidades executoras do PNAE com as comunidades”, explica a pesquisadora.
Nas escolas visitadas pela equipe, o prato mais citado pela comunidade é o mungunzá. A receita típica da região, feita com feijão e milho, está presente em todas as escolas, eleito como o alimento favorito entre os estudantes. Para a comunidade escolar, assim como na tradição local, o dia de comer mungunzá é “dia de festa”. “É um prato que não precisa de acompanhamento”, explica Valdeci Oliveira, agricultora familiar e cozinheira, destacando o mungunzá como um alimento completo.
A regionalização do cardápio contribui para assegurar a direito humano à alimentação e nutrição adequadas (DHANA), reduzindo a oferta de alimentos processados e ultraprocessados nas escolas. A aquisição direta de alimentos da agricultura familiar para a entrega nas escolas possibilita a adequação dos cardápios à cultura alimentar local, gerando renda para a comunidade em um circuito sustentável, sendo uma estratégia para garantia do DHANA.
O umbu como identidade e resistência
Em sala de aula os estudantes são incentivados a trabalharem o tema da alimentação, nutrição, soberania e segurança alimentar e nutricional, produzindo materiais, resgatando memórias e dialogando sobre as comidas tradicionais de Conceição das Crioulas. Além do resgate histórico da comida, visitas aos espaços de roçados agroecológicos presentes na comunidade abordam também a importância da preservação do meio ambiente.
Cada árvore possui um
nome e uma história,
destacando a importância
do “umbuzeiro em pé”
Exemplo disso, a preservação dos umbuzeiros espalhados pela comunidade representa a preservação da história e da cultura alimentar local. Cada árvore possui um nome e uma história, destacando a importância do “umbuzeiro em pé”. Do umbuzeiro é feito o suco de umbu, geleias e o processamento da polpa do umbu – que pode ser conservado por até três anos.
Cozinheira escolar e agricultora, Cicera Maria descreve o uso da polpa de umbu, feita por ela e outras mulheres da comunidade, para a produção de uma bebida típica, a umbuzada. A bebida é feita a partir da polpa do umbu batida com leite e açúcar e já foi um alimento fornecido por elas para a alimentação escolar. Devido aos diversos entraves encontrados para a adequação de documentação, hoje este alimento não é mais servido. “Os alunos sentem muita falta”, conta a cozinheira.
Ela descreve como é o processamento da polpa. “A gente colhe as frutas no mato, chega em casa, seleciona e lava elas. Eu lavo em ‘três águas’. Então a gente coloca no fogo em tacho grande. Depois de cozinhar, em uma bacia você vai peneirar e separar o caroço da polpa. Por último, guarda nos vasilhames e conserva”, detalha Cicera.
Foi através do processamento do umbu que a agricultora começou a trabalhar com a alimentação escolar. “Dos umbu eu já trabalhei no Centro de Produção Artesanal Casa Comunitária Francisca Ferreira, que era o grupo de mulheres, depois que vim pra cá [para a escola]. Como passo mais tempo aqui, sai do grupo e fiquei só aqui na escola, mas eu trabalho em casa com a polpa de umbu. Eu encho o freezer e passo o ano todo vendendo”, descreve a agricultora e cozinheira.
Barreiras para o fornecimento à alimentação escolar
As práticas de extrativismo sustentável realizadas pela comunidade quilombola contribuem na preservação da caatinga, na segurança alimentar e nutricional das famílias e na geração de renda. Porém a produção local encontra barreiras burocráticas quando tentam fornecer alimentos aos mercados institucionais, como o PNAE.
Bárbara de Sá Carvalho, nutricionista e responsável técnica no município de Salgueiro, explica as causas dessa situação. “No caso, por exemplo, da polpa de fruta, a gente não pode inserir na alimentação escolar, a polpa de umbu e outras polpas [produzidas artesanalmente na comunidade]. Antes serviam, depois foi barrado por outras leis”.
“O produtor tem que estar regularizado, tem que ter o selo de inspeção e a polpa de fruta precisa ter selo de inspeção federal, que é bem complicado de tirar. Por isso, muitas vezes, a gente não contempla no cardápio da região quilombola o que realmente produzem em Conceição das Crioulas, por que a gente se esbarra na Lei”, detalha a nutricionista.
Isso pode mudar graças a novas adequações normativas, como a Nota Técnica 03/2020 do Ministério Público Federal (MPF), que determina a possibilidade de dispensa dos serviços de inspeção sanitária de alimentos produzidos por povos indígenas e comunidades tradicionais para o fornecimento aos mercados institucionais, como a alimentação escolar.
E o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), através de nota técnica, orienta as entidades executoras do PNAE a aceitarem o Número de Inscrição Social (NIS) como alternativa ao CAF (Cadastrado da Agricultura Familiar) e a DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf), para povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais (PCTs) realizarem a venda de alimentos ao PNAE.
A agricultora Maria de Lourdes da Silva, conhecida como Lourdinha, comemora as medidas, apesar da desconfiança sobre sua efetivação. “Vou correr atrás, porque pra mim, a lei só está valendo se tiver sendo de fato atendida, executada. E eu estou muito ansiosa para ver os resultados. Até porque eu sou uma das agricultoras que também quer e vai pleitear, quero entregar também. Uma oportunidade de vender nossa produção e gerar renda dentro do quilombo, dentro da localidade”, relata.
O PNAE possui um valor per capita específico para estudantes de escolas quilombolas, indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais. Atualmente, este valor diário é de R$0,86 por estudante e R$ 1,07 para estudantes em creches ou de escolas de tempo integral.
A legislação do programa também determina que, ao menos, 30% de seus recursos devem ser destinados para a compra de alimentos vindos da agricultura familiar, priorizando mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas, assentados da reforma agrária e outros povos e comunidades tradicionais. Porém, ainda hoje, muitas famílias que compõem esses grupos não vendem ao PNAE diante de entraves burocráticos e falta de vontade política por parte das autoridades públicas, como aponta estudo do ÓAÊ.
*O grupo de pesquisa e extensão CulinAfro, do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Macaé (RJ), foi criado em 2014. Hoje o grupo atua em diferentes linhas de pesquisa sendo uma delas a Alimentação escolar quilombola, com apoio do Instituto Ibirapitanga.