Pelas Assessorias de Comunicação das entidades organizadoras do encontro
Criado há mais de 60 anos e presente em todo o Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que ele cumpra todos os seus objetivos. Para promover um diálogo amplo sobre gargalos e possíveis caminhos, foi realizado em Brasília o Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”.
Ao longo de dois dias de trabalho, representantes dessas populações, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.
A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. O evento, realizado entre os dias 27 e 28 de maio, terá como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano, além de uma carta de recomendações – aprovada no encontro – para ser apresentada ao poder público para melhorias de acesso ao Pnae.
Diálogos a partir da realidade local
A programação do evento foi organizada para promover a troca de experiências entre as pessoas presentes. Estes diálogos trouxeram pontos relevantes para entender como na prática ainda existem muitos desafios para a implementação do Pnae.
Em seu território, Vitória Rodrigues da Silva conhece muito bem essa realidade. Vitória é moradora da aldeia Lourdes, localizada no município amazonense de Boca do Acre, terra indígena (TI) não demarcada. Mas seu povo, os Jamamadi, segue no processo de organização, inclusive por meio da participação nas vendas para o Pnae. “Trabalhamos em nossas roças com muita dificuldade e enfrentamos pressões de fora. Mas já entregamos 26 produtos, como banana, abacaxi, inhame, cará, açaí, buriti, macaxeira. Quando vinha merenda só da sede do município, faltava muito. Isso dificultava muito para as crianças”, conta Vitória.
Em Boca do Acre, foi necessária uma articulação de diversas instituições e organizações locais para que os processos de compras de povos indígenas e comunidades tradicionais fossem colocados em prática. Esse processo vem ocorrendo desde 2021, com a mobilização via Organização dos Povos Indígenas Jamamadi e Apurinã de Boca do Acre- AM (Opiajbam) e a Associação Bom Jesus da Resex Arapixi, em articulação com a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), Ministério Público Federal, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam).
Em 2022, foram realizadas oficinas de preparação, compartilhando processos de mapeamento de produção e de realização de chamadas públicas entre estas organizações, povos indígenas, ribeirinhas e ribeirinhos, e gestão pública local. O esforço rendeu resultados positivos e já em 2023 as primeiras entregas começaram a acontecer.
E essas entregas envolvem grupos diversos: são moradoras e moradores da Reserva Extrativista Arapixi, da Terra Indígena Boca do Acre, e de territórios ainda não demarcados, como aquele onde Vitória vive. “Para nós, acessar o Pnae significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade. Como é o começo, vamos aprendendo e envolvendo mais pessoas. Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade, e isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”, ressalta Vitória.
Com 15 anos de experiência nas vendas ao Pnae, Jorge Henrique Flores participou do encontro representando o Quilombo São Miguel, localizado no município de Maracaju, que fica na região centro-sul de Mato Grosso do Sul. A comunidade possui uma produção de alimentos diversificada e as mais de 60 famílias se organizam para a venda ao Pnae. O carro-chefe é o hortifrúti, com a entrega de verduras, legumes e frutas, incluindo tomate, banana, mamão, melancia, abacaxi, maracujá, entre outros itens. Há também a produção da polpa de frutas, pães, doces, mel, rapadura e farinha de mandioca.
Por semana, as famílias fornecem de 200 a 300 quilos de alimentos para a alimentação escolar das mais de 90 escolas presentes no município. As vendas para o Pnae impulsionaram o retorno das famílias para a produção local de alimentos. “O Pnae, para o quilombo, veio trazer uma mudança de vida para o nosso produtor. Aqueles que trabalhavam em fazendas e em outras áreas voltaram para a comunidade e começaram a ter a sua própria garantia financeira. Puderam melhorar sua situação, comprar um carro, uma moto, melhorar suas casas”, descreve o agricultor.
As vendas, que começaram em 2009, tiveram obstáculos no caminho. O primeiro impasse foi a adequação às normas da Vigilância Sanitária. Como solução, passaram a beneficiar os alimentos. Então surgiu outro desafio: como facilitar o preparo de alimentos que eram vendidos com a casca, como a mandioca? A resposta foi a implementação de mais uma etapa de beneficiamento, com a entrega das mandiocas já descascadas e picadas. As cozinheiras escolares gostaram tanto que o procedimento começou a ser utilizado também com outros alimentos, como a abóbora.
Para avançar ainda mais na aceitação dos produtos, a comunidade mantém um diálogo permanente com as nutricionistas envolvidas nas compras na alimentação escolar, além de criarem um selo de certificação, o “Sabor de Maracaju”. A comunidade também compõe a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos e se articula com outros povos, como a população indígena local. Porém, ainda hoje, existem desafios no acesso ao Pnae, na adequação às normas sanitárias, emissão de notas fiscais, entre outras burocracias, como explica Jorge. Ele salienta a importância do encontro, trazendo esses desafios para o centro do debate.
“Para mim, foi importante [ter participado do encontro] porque tirou muitas dúvidas do que a gente tem feito lá. Como escoar a produção? Como trabalhar a política pública dentro da comunidade? Como vender esses alimentos? Esclareceu várias ideias para as dificuldades que enfrentamos. Como emitir notas fiscais, entregar produtos de qualidade e se adequar à inspeção sanitária? Isso foi muito debatido aqui e a gente está vencendo lá. Eu acredito que esse encontro vai produzir muitos frutos e vai ter resposta [do poder público]. A nossa comunidade vem fazendo muitas coisas que estão questionando aqui”, relata.
Por onde avançar?
Em seus dois dias, o encontro promoveu uma troca intensa, o que permitiu apontar os principais pontos de gargalo do Pnae, estimulando a proposição de soluções que atendam aos modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. “Já temos um quadro que prioriza alimentos da agricultura familiar, principalmente de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária. Mas sabemos que, no plano local, os desafios ainda são muitos”, observa a secretária executiva do ÓSocioBio, Laura Souza.
Ela destaca a necessidade de reconhecer que ainda existem muitos entraves para a implementação desta política. Lembra, nesse sentido, que poucos estados e municípios compram hoje produtos dessas populações, pois há uma burocracia excessiva, como a cobrança de inúmeros documentos e regras. “Cabe ao poder público simplificar esses processos, por meio da adequação das normativas, para facilitar e ampliar o acesso às políticas públicas”, conclui.
Para Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), ainda são muitos os desafios para que as diretrizes do Pnae sejam plenamente asseguradas. “Em várias escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas a alimentação escolar é insuficiente, ultraprocessada e irregular no decorrer do ano, desconsiderando a diretriz do respeito à cultura alimentar. Além disso, é forte o racismo institucional”, diz.
Ela avalia que as recomendações construídas no encontro constituem uma ferramenta assertiva para influenciar os espaços de tomada de decisão e pressionar órgãos públicos envolvidos na implementação do Pnae. “Precisamos de novas normativas que respeitem o direito à autodeterminação desses povos e comunidades. Nossas políticas universais precisam servir para toda a diversidade de populações, terras e territórios, e isso ainda está longe de ser uma realidade”, acrescenta.
Os pontos trazidos no conjunto de recomendações perpassam por cadastramento, chamadas públicas, vigilância sanitária, operacionalização, alocação de recursos, reajuste anual e período de férias, entre outros eixos. O debate do encontro ressaltou a importância de os processos de compra do Pnae se basearem em diagnósticos e mapeamentos agrícolas que valorizem alimentos locais, tradicionais, respeitando a sazonalidade, com precificação que incorpore custos de logística para entrega de produtos às escolas. E que os procedimentos sejam menos burocráticos e mais adequados às práticas comunitárias e às realidades produtivas locais.
Criada em 2021, a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil é formada por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, sob a coordenação do Ministério Público Federal (MPF). A Mesa atua em âmbito nacional, com comissões estaduais, discutindo ações e medidas voltadas para viabilizar a compra, pelo poder público, de itens produzidos diretamente pelas populações indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais para a alimentação escolar.
Reconhecendo a alimentação escolar como parte das estratégias de produção, autoconsumo e de controle alimentar inseridos dentro da cultura dos povos indígenas e comunidades tradicionais, em 2020 a Catrapovos lançou a Nota Técnica 3/2020/6ªCCR/MPF. A nota possibilita a dispensa de registro, inspeção e fiscalização dos alimentos produzidos nas aldeias e comunidades tradicionais para a venda à alimentação escolar, respeitando os hábitos e cultura alimentar local.
Porém, a ausência de normativas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) com orientações às entidades executoras sobre os procedimentos operacionais para a sua implementação gera um ambiente de insegurança por parte de gestores e nutricionistas, que, muitas vezes, deixam de comprar alimentos tradicionais e disponíveis localmente – como é o caso do pescado, das farinhas e polpas de fruta. Isso se soma à insuficiente normatização das prioridades asseguradas em lei para as compras públicas, bem como a capacitação dos gestores e agricultores. Esses foram debates centrais ao longo do encontro.
O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar, com o apoio da FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal. Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Ao final do encontro, a partir da sistematização das experiências relatadas, uma agenda comum foi firmada, além de uma carta de recomendações que será apresentada ao poder público ainda neste ano.