Por assessorias de comunicação das organizações contrárias ao PL 3096/2024
A Comissão de Educação do Senado Federal poderá votar nesta terça-feira (12) o Projeto de Lei nº 3.096/2024, da senadora Dorinha Seabra (UNIÃO/TO), que autoriza a terceirização do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) nas instituições federais de ensino, entregando em parcela única o orçamento anual do programa. A medida é questionada por organizações da sociedade civil e estudos indicam riscos para a garantia da alimentação escolar adequada e saudável.
O projeto de lei estabelece que seja “admitida a terceirização da gestão de serviços de alimentação escolar”. E determina que instituições federais recebam o orçamento anual do Pnae em uma única parcela – atualmente o orçamento anual é dividido em oito parcelas repassadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Especialistas apontam incertezas sobre a capacidade do FNDE em repassar em parcela única o orçamento anual do Pnae. E alertam que essa combinação de medidas enfraquece o aspecto responsivo da prestação de contas. Dificultando o controle social ao possibilitar a entrega do orçamento anual do programa de uma só vez às terceirizadas. Com o agravamento de abrir precedente para a expansão da medida para toda a rede de ensino básico.
- ATUALIZAÇÃO (12/11/2024): Após pressão da sociedade civil, votação de PL 3.096/2024 e audiência pública sobre o tema é convocada. Projeto de terceirização da alimentação escolar recebe ressalvas em audiência.
Pnae nas instituições federais de ensino
As instituições federais atendidas pelo Pnae representam 685 unidades de ensino da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), vinculadas a 38 Institutos Federais, a dois Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), a um campus técnico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a 22 escolas técnicas ligadas às universidades federais e ao Colégio Pedro II (Rio de Janeiro). Atualmente, a rede soma mais de 1,5 milhão de estudantes matriculados.
O PL 3096/2024 apresenta propostas para o Pnae e para o Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE), diante da ausência de suplementação dos recursos à nível estadual e municipal para as instituições de ensino.
“Os estabelecimentos federais de educação básica não dispõem de outro nível governamental para complementar o financiamento dos referidos programas. É somente a União que financia tais medidas de apoio aos alunos dessas escolas”, defende o texto do PL 3096/2024.
Em parecer enviado ao Senado, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) reconhece o mérito do projeto de lei. “[O PL nº 3096/2024] apresenta a intencionalidade de preencher uma importante lacuna na legislação atual, indicando caminhos para legislar sobre o apoio da União às escolas da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica para a oferta de alimentação e transporte escolar. Este é um mérito do referido PL”.
Mas o documento do Observatório também alerta sobre os riscos que dois pontos do PL representam para o Pnae e propõe emendas modificativas para retirar a “a terceirização dos serviços de alimentação escolar e também a proposta de repasse em parcela única”.
Estudos sobre a terceirização na alimentação escolar
A terceirização representa um perigo para a qualidade da alimentação escolar, aponta o estudo “Terceirização no PNAE: riscos jurídicos e implicações para o cumprimento das diretrizes da alimentação escolar”, feito a partir de análises de relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).
Publicado originalmente no Dossiê ÓAÊ 2023-2024: Diversidades e desigualdades na alimentação escolar, o artigo aponta uma série de irregularidades identificadas pelo TCU em casos em que a terceirização foi realizada na execução do Pnae pelas Entidades Executoras (EEx) – instituições federais de ensino e secretarias de Educação municipais, estaduais e do Distrito Federal.
De acordo com as conclusões apresentadas, a terceirização “não soluciona as principais falhas na gestão do Pnae e ainda são encontradas outras irregularidades inerentes a esse modelo, como a dificuldade de controle na gestão do contrato, a não garantia da qualidade dos gêneros alimentícios adquiridos, o não cumprimento do cardápio e das compras da agricultura familiar”, elenca. O levantamento também ressalta a “necessidade de mais estudos científicos que apurem a eficácia desse modelo de gestão”.
O documento descreve o caráter social da alimentação escolar e a necessidade de sua garantia enquanto um direito estabelecido pela lei 11.497/2009 e pelo artigo 6 da Constituição Federal. “A alimentação escolar cumpre um papel de proteção social, ao promover segurança alimentar e nutricional e contribuir com o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, na aprendizagem, no rendimento escolar, bem como colaborar na formação de práticas alimentares saudáveis”.
Terceirizações no Pnae
As terceirizações no Pnae já são uma realidade, porém a resolução 06/2020 do FNDE estabelece que os recursos financeiros repassados no âmbito do Pnae devem ser utilizados exclusivamente na aquisição de alimentos.
“A EEx que optar por adquirir as refeições, mediante terceirização de serviços, somente poderá utilizar os recursos repassados pelo FNDE à conta do PNAE para o pagamento dos gêneros alimentícios, ficando as demais despesas necessárias ao fornecimento dessas refeições a seu cargo, com recursos próprios”, diz a resolução.
Segundo o levantamento divulgado pelo ÓAÊ, entre 2015 e 2022, houve uma redução de 56% no número de terceirizações praticadas pelas Entidades Executoras. Saindo de 5,24% em 2019, para 2,31% em 2022. Rio de Janeiro (14,94%) e São Paulo (11,38%) são os estados com maior percentual de terceirização.
“Existem várias modalidades de terceirização. O que a gente trata no artigo é o mais preocupante que é o que a gente chama de terceirização total, onde você terceiriza não só a mão de obra, mas todo o serviço de alimentação, inclusive a compra dos gêneros alimentícios. Essa modalidade tem caído nos índices nacionais, esse é um bom sinal. Mas algumas regiões, como a região Sudeste, tem um índice muito mais alto que o restante do Brasil”, explica a nutricionista e mestre em Saúde Pública Giorgia Russo, uma das autoras do estudo.
O Projeto de Lei nº 3.096/2024 induz à terceirização total do Pnae nas instituições federais ao propor a terceirização do programa com repasse único do orçamento anual. Criando brechas sobre o uso deste recurso para outros fins, além da aquisição de alimentos. “Admitida a terceirização da gestão de serviços de alimentação escolar”, diz trecho do PL.
A terceirização também impõe desafios para a adequação de outras leis relacionadas à alimentação escolar, como no caso da cidade de São Paulo (SP), onde existe a Lei dos Alimentos Orgânicos (Lei nº 16.140/2015). A lei tornou obrigatória a inclusão de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar do sistema municipal de ensino e estabelece 2026 como prazo para que esses alimentos sejam 100% das aquisições para a alimentação escolar.
Russo é consultora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), entidade que compõe a Comissão Gestora da Lei dos Alimentos Orgânicos. E expõe os desafios colocados pela terceirização.
“Aqui no município de São Paulo começou uma expansão muito grande da terceirização total [do Pnae]. A meta do governo atual é chegar a 100% das escolas terceirizadas. E essa modalidade tem atrapalhado muito a compra dos alimentos de base agroecológica. A Prefeitura ainda não tem uma solução concreta para fazer com que essas escolas comprem alimentos de base agroecológica, que as empresas terceirizadas façam isso”, explica.
A nutricionista enfatiza o risco disso para a saúde das crianças e adolescentes. “Não está sendo cumprida uma lei que é importantíssima para a saúde dos estudantes da rede pública, principalmente é um direito deles comer um alimento sem agrotóxico, mas também para todo um sistema alimentar saudável e sustentável que seria fomentado com essa lei. Então a terceirização aqui tem atrapalhado muito fortemente esse aspecto”, relata.
Para a nutricionista doutora em Saúde Pública, Daniela Bicalho, também autora do artigo, “a terceirização da alimentação escolar nas instituições federais de ensino traz desafios significativos para o controle social do Pnae. O programa é regido com diretrizes em sua legislação, como o apoio ao desenvolvimento sustentável, valorização da produção local e participação da comunidade no controle social, entre outras. Quando o serviço é terceirizado, as decisões sobre a compra e o preparo dos alimentos podem se distanciar dessas diretrizes, diminuindo a transparência e dificultando o monitoramento por parte da comunidade escolar e dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAEs)”, explica.
Riscos às diretrizes da alimentação escolar
Diversas irregularidades foram identificadas no levantamento realizado pelas pesquisadoras, como irregularidades em processo licitatório, ausência de controle social, divergência sobre quantidade de refeições servidas, falta de equipamentos, cardápios em discordância, falhas no controle da execução, profissionais em número inferior, alimentos em desacordo com o contrato, descumprimento na aquisição de alimentos da agricultura familiar, diminuição da quantidade de alimentos fornecidos e piora na qualidade desses alimentos.
Segundo Bicalho, estudos indicam conflitos de interesse (CoI) na alimentação escolar causados pela terceirização. “Com empresas privadas assumindo a gestão, há risco de que as prioridades financeiras sobreponham-se ao interesse nutricional e educacional dos estudantes, comprometendo o papel social do programa”.
De acordo com ela, “a qualidade da alimentação escolar tende a piorar com a terceirização, pois esse modelo geralmente prioriza a eficiência financeira em detrimento de critérios rigorosos de qualidade nutricional. A lógica de funcionamento de uma empresa privada, que tem objetivo de lucro, não segue a mesma lógica da administração pública, que tem como objetivo o interesse público, o que significaria um risco ao fornecimento de uma alimentação escolar adequada”.
As autoras do estudo também alertam dos riscos que a terceirização causa à diretriz do Pnae, abrindo espaço para os ultraprocessados e não garantindo o mínimo de 30% dos alimentos vindos da agricultura familiar. Tal preocupação é compartilhada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag em parecer técnico sobre o projeto de lei 3096/2024.
“A Contag entende que a autorização para a terceirização da alimentação escolar representa um retrocesso nos avanços conquistados pelo Pnae e no apoio à agricultura familiar e ao desenvolvimento local, pois rompe com a venda direta e será priorizado o interesse privado em detrimento do interesse público. Por essa razão, recomenda-se a revisão do texto do PL nº 3096/2024”, defende a Confederação.
Entidades pedem audiência pública sobre PL
Organizações da sociedade civil pedem o apoio do presidente da Comissão de Educação e Cultura do Senado, senador Flávio Arns (PSB/PR), da autora do PL, senadora Dorinha Seabra, e dos senadores e senadoras que compõem a Comissão, para adiar a votação e realizar uma audiência pública para “debater este PL com tempo adequado, levando em consideração as propostas da sociedade civil e relatório do Tribunal de Contas da União em relação aos riscos da terceirização da alimentação escolar”, diz comunicado do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
Giorgia Russo, representante do Idec no Comitê Consultivo do ÓAÊ, chama a atenção para os riscos que a medida representa para a garantia das diretrizes do Pnae em toda a educação básica. “Por mais que seja um PL para instituições federais, abre um precedente muito grande. A gente sabe que a gestão do Pnae é complexa, que realizar as compras também é complexo. Você precisa de muito controle, muito planejamento da entidade executora e organização para fazer uma boa execução do Pnae. E muitas vezes se faz essa opção de terceirizar esse trabalho, mas o preço disso para o cumprimento das diretrizes do programa é muito grave”.