A alta no preço dos alimentos tem impactado cada vez mais os lares e a economia brasileira. Entre as causas, estão fatores internos e externos de médio e longo prazo, com destaque ao modelo agropecuário hegemônico que prioriza as exportações e as consequências das mudanças climáticas. O orçamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) também sofre com a inflação, sem reajustes que protejam seu poder de compra. No entanto, as diretrizes do Pnae oferecem saídas para os desafios atuais, promovendo a produção de alimentos de forma sustentável e contínua através da agricultura familiar.
O Pnae começou 2025 em um contexto preocupante, vulnerável à inflação dos alimentos, o orçamento do programa está congelado há dois anos e acumulada uma perda de 42% do poder de compra em 14 anos. A inflação dos alimentos foi responsável por mais de um terço da alta no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 2024, segundo o IBGE.
Incubido de alimentar diariamente 40 milhões de estudantes brasileiros, o Pnae determina em suas diretrizes a destinação mínima de 30% do seu orçamento para a aquisição de alimentos da agricultura familiar – priorizando mulheres, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e áreas de reforma agrária.
Em 2024, o orçamento federal do programa foi de R$ 5,7 bilhões, repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos estados, municípios e Distrito Federal. Porém, para ter o mesmo poder de compra de 2010, o orçamento do programa precisaria de um reajuste de R$ 4,2 bilhões.
O percentual mínimo do orçamento assegurado para a agricultura familiar correspondeu, no último ano, a aproximadamente R$ 1,71 bilhão. Caso o Pnae tivesse o mesmo poder de compra de 2010, o valor atual destinado para a agricultura familiar seria próximo de R$ 3 bilhões.
Para a Débora Olimpio, assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), é preciso olhar o Pnae como um exemplo de política a ser fortalecida e multiplicada, visando a segurança alimentar no atual momento.
“Com as diretrizes do Pnae, temos a possibilidade de garantir o direito à alimentação adequada e saudável no ambiente escolar, criando hábitos alimentares mais saudáveis”, diz. De acordo com Débora, as diretrizes do programa promovem a “valorização da cultura alimentar local, o fortalecimento da agricultura familiar e a conscientização sobre a importância de termos sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis”.
A assessora do ÓAÊ enfatiza que sem o reajuste, mesmo com diversos resultados positivos, a alimentação escolar será enfraquecida ano a ano. Desprotegida da inflação dos alimentos “que corrói seu orçamento” por “não ser tratada como prioridade no orçamento federal”.
“Perdemos 42% do poder de compra em 14 anos, é como se metade do prato de comida de cada estudante desaparecesse. Por isso defendemos a aprovação de uma lei estabelecendo o reajuste anual baseado na inflação dos alimentos”, explica.
As soluções do Pnae para a inflação dos alimentos
Para o economista e doutor em desenvolvimento econômico pela Unicamp, Valter Palmieri Jr., o modelo de produção concentrada do monocultivo está diretamente relacionado à inflação dos alimentos. Neste modelo hegemonizado pelo agronegócio, que prioriza a produção de commodities, qualquer fenômeno que aconteça em um determinado território pode impactar a disponibilidade de um item alimentício em nível nacional ou global.
“Hoje, dos mais de 5.500 municípios do Brasil, apenas 20 municípios produzem mais de 40% de todo o arroz nacional. E todos esses municípios estão em um único estado, o Rio Grande do Sul. Então, se acontecer algum problema, como aconteceu nessa região, isso vai afetar o país inteiro”, descreve.
Este modelo também promove a escassez de alimentos no mercado interno ao priorizar a produção de culturas para exportação. Palmieri Jr. alerta que, sem o adequado direcionamento do poder público, a agricultura familiar pode ser cooptada por essa lógica. “O agricultor tende a produzir aquilo que dá mais lucro. Então, às vezes, o agricultor vai trocar a produção de feijão por soja. Porque a soja é mais lucrativa”, observa.
Ele ressalta que apenas 2,5% do que o Brasil produz de frutas são para exportação. “Hortaliças de uma forma geral, frutas, arroz, feijão, o que nós exportamos em relação a isso é pouquíssimo representativo”. Segundo ele, “o governo deve priorizar recursos e políticas públicas para produzir os alimentos mais importantes para os brasileiros, consumidos internamente e que nós pouco exportamos”.
Porém, atualmente, mais de três quartos dos hectares utilizados para a produção agropecuária no Brasil são ocupados por apenas três culturas: pecuária (164 milhões de hectares), soja (40 milhões de hectares) e cana (9 milhões de hectares), aponta levantamento do MapBiomas.
O doutor em desenvolvimento econômico analisa ser impossível dissociar esse debate de uma questão de desenvolvimento e soberania. “Um país mais desenvolvido economicamente é um país onde existe uma maior soberania alimentar”, define. Para ele, “soberania alimentar significa justamente isso, a capacidade do país de ditar os seus rumos, os seus caminhos de desenvolvimento e ter sua autonomia”, explica.
Neste sentido, ele reforça o reajuste do Pnae como necessário. “O valor [per capita do Pnae] está defasado há muito tempo e defasado em relação a um tempo em que nunca foi um valor tão elevado”, afirma. “O valor acaba impondo desafios e dificuldades para uma política pública fundamental, que é, ao mesmo tempo, importante em três áreas fundamentais, para a segurança alimentar, a agricultura familiar e a educação”, alerta o pesquisador.
Produção local e diversificada como resposta
Para Palmieri Jr., é necessário olhar com criticidade os sistemas alimentares e seus impactos sociais, econômicos e ambientais. “A globalização alimentar, da forma como ocorreu nas últimas décadas, não tem como continuar, tem que ter mudanças”, ressalta.
Ele aponta o importante papel da alimentação escolar como exemplo para esta mudança. “Quando a gente defende a participação da agricultura familiar, de garantir o mínimo de 30% nas compras do Pnae, a gente fala sobre garantir e valorizar a cultura alimentar regional, esse trabalho da elaboração dos cardápios, levar em consideração a sazonalidade da produção dos alimentos e construir hábitos alimentares mais saudáveis e sustentáveis”, enfatiza.
Como forma de mitigação das mudanças climáticas, a promoção de sistemas alimentares sustentáveis aparece como uma necessidade cada vez maior. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) alerta que 74% da América Latina e do Caribe estão sob alta exposição a eventos climáticos extremos, acarretando o aumento da insegurança alimentar.
Segundo Luana de Lima Cunha, assessora de políticas públicas da FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Nutrição e Alimentação Adequada, os sistemas alimentares hegemônicos têm intensificado as crises climáticas e seus impactos socioambientais, por serem baseados na monocultura, industrialização, uso intensivo de agrotóxicos, desmatamento e concentração de terras.
“Esse modelo de produção compromete a sociobiodiversidade, degrada os recursos naturais e agrava a insegurança alimentar e nutricional, principalmente entre populações mais vulnerabilizadas. Devemos garantir que as políticas públicas promovam modelos produtivos que respeitem a cultura e diversidade alimentar, os direitos humanos e o equilíbrio climático”, salienta.
Na contramão do modelo de monocultivo, o Pnae apresenta experiências exitosas de impulsionamento na produção oriunda da agricultura familiar, de maneira sustentável e com diversidade de itens para a alimentação escolar. No entanto, mesmo nestes casos, os impactos das mudanças climáticas já são perceptíveis e requerem o fortalecimento desta política.
Produção de alimentos resiste às secas na Amazônia
No interior do Amazonas, São Gabriel da Cachoeira teve um salto no número de agricultores indígenas fornecendo sua produção para a alimentação escolar. Em 2024 foram 128 agricultores familiares vendendo alimentos para o Pnae, número muito expressivo quando comparado à ausência de indígenas participando dessas compras públicas entre 2016 e 2017. Porém esses avanços correm risco diante das mudanças climáticas e o insuficiente apoio do poder público.
Florinda Lima Orjuela é agricultora familiar e, desde 2019, fornece alimentos para a alimentação escolar. Ela relata como o agravamento das secas interfere na produção.
“Enfrentamos dificuldades pelas mudanças climáticas, que afetam diretamente o agricultor familiar. Nós trabalhamos com o sistema tradicional, assim temos as estações do ano para planejar quando começar a preparar o solo, fazer a roça e iniciar o plantio. Com as mudanças climáticas parece que ficamos perdidos, sem saber quando fazer o plantio. São tempos difíceis e de muita preocupação”, relata.
Seca em São Gabriel da Cachoeira dificulta transporte de barcos/ Foto: Cleocimara Reis/Arquivo pessoal
Integrante da Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira (AIETUM – SGC), ela produz mandioca branca, goma, entre outros derivados. Também planta cará, cubiu, banana, macaxeira, abacaxi, caju e batata doce. As plantações são feitas pelas famílias e pela associação.
“Tem produtos que a gente consegue trocar quando falta por causa da seca, pra não ficar em prejuízo ou deixar de cumprir o contrato. Assim vamos negociando com os setores responsáveis para nenhum dos lados sair em prejuízo”, conta.
O agricultor Mário Fernandes Meira, também da etnia Tuyuka, fornece alimentos para o Pnae há pouco mais de cinco anos. Com o início das vendas, ele pode estruturar melhor sua produção, com a construção de quatro estufas onde produz alface, couve, rúcula, cheiro-verde, entre outras hortaliças, além da roça com abacaxi, mandioca e banana. “Participar dos editais melhorou muito para mim”, diz.
Apesar dos avanços, os últimos anos foram de transtornos para ele e outros integrantes da Associação Indígena Tuyuka. Com a seca de 2024 ele perdeu a produção de alface, não conseguiu fazer todas as entregas que havia planejado e enfrentou dificuldades para o transporte fluvial. “Nesse último ano a seca foi demais. Não consegui produzir o alface. Não temos motores para bombear água para as verduras. E meu tio estragou a rabetinha [pequeno barco] dele tentando fazer as entregas”, detalha.
Contudo, Mário não desanima e se enche de orgulho para falar do Pnae. “Com os editais estamos conseguindo trabalhar e sustentar nossos filhos, que dentro da escola merendam nossa produção. É uma alegria”, ressalta.
Agricultores sentem os efeitos climáticos de Norte a Sul do país
As secas, que causam perdas para agricultores na Amazônia, também estão presentes na região Centro-Oeste do país. O Mato Grosso do Sul fechou 2024 com mais de 13 mil focos de queimadas e 2,6 milhões de hectares destruídos, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Para Laureci Nunes, agricultora familiar do Quilombo São Miguel, em Nioaque (MS), “de uma maneira geral houve aumento da estiagem nos últimos tempos. Nem a época da pandemia afetou tanto [a produção] como em 2024”, diz. Ela explica que há variação de preços na região diante das mudanças do clima. “Na estiagem o preço aumenta em relação aos períodos de chuva”.
A falta de chuvas não é o único problema enfrentado por ela. Os temporais também aumentaram e têm causado frequentes casos de falta de energia no quilombo onde vive. “Falta energia desde 2023. Já cheguei a ficar de 3 à 9 dias sem energia elétrica”.

Sem energia elétrica, irrigação é interrompida / Foto:Laureci Nunes /Arquivo pessoal
O principal risco da falta de energia é interromper o processo de produção e armazenamento dos itens que ela fornece ao Pnae, como pães caseiro, doce de leite, geléias, polpas, pão de queijo, queijos e derivados de abóbora, batata, beterraba, cenoura, entre outros. “Sem energia não tem como fazer irrigação ou armazenar os alimentos. Fico no prejuízo”, afirma Laureci.
Mesmo com os desafios atuais, ela se orgulha de sua produção.Tudo o que produziu na última década está registrado em um caderno de anotações, servindo tanto para um monitoramento interno, quanto como um “comprovante” de sua dedicação. “A gente que é pequeno, quando não tem esse interesse do poder público, tem medo de perder o programa. Por isso, faço esse registro da nossa produção”.






Quilombo São Miguel fornece diversos itens para alimentação escolar / Foto:Laureci Nunes /Arquivo pessoal
A agricultora enfatiza a necessidade de incentivar a produção de alimentos da agricultura familiar como forma de dar respostas aos problemas climáticos. “De um modo geral, todo mundo está buscando boas práticas de produção, porque temos que produzir alimentos”.
Esse interesse por modelos sustentáveis de produção também é compartilhado por Bruna Dal Pizzol. Ela é agricultora familiar em Vacaria (RS) e junto com seu companheiro possuem um sítio de produção de alimentos orgânicos.
A produção orgânica, que é comercializada em feiras e para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclui frutas como pêssego, figo, ameixa, maçã, goiaba serrana e hortaliças em geral, como repolho, folhosas, tomate, cebola, alho, berinjela, pimentão, entre outras variedades.



Em dois anos, casal teve mais de R$ 11 mil em prejuízos pelo excesso de chuvas / Fotos: Bruna Dal Pizzol
O sítio de Bruna foi poupado nas enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 – deixando mais de 200 mortos ou desaparecidos e 3,1 milhões de pessoas afetadas. Porém, o excesso de chuvas dos últimos anos afetou sua produção. Em 2023, os prejuízos na produção de pêssegos foram de mais de R$ 8 mil. E outros R$ 3 mil, aproximadamente, foram perdidos em 2024.
Segundo a agricultora, os dilemas sobre o futuro são compartilhados entre agricultores próximos. “Sempre conversamos com agricultores amigos e todos sentem o mesmo. É um trabalho duro e que depende muito do clima, se ele está a cada ano mais instável, como isso pode nos deixar seguros de que podemos ficar financeiramente bem?”, questiona Bruna.
A jovem expõe seu receio diante das mudanças climáticas e a insuficiência de amparo de políticas públicas. “Está cada ano mais difícil produzir, ainda mais quando se trata de um alimento orgânico! Eu não vejo incentivos do poder público. Desanima saber que a cada ano esse cenário de mudanças climáticas vai piorar”, lamenta.