Por Yuri Simeon, do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
Com colaboração de Gleiceani Nogueira, da ASACom
Com o objetivo de promover a produção de alimentos saudáveis em quintais produtivos de mulheres no Nordeste brasileiro, o projeto Quintais das Margaridas irá organizar a produção de alimentos de 1.120 mulheres, em 42 municípios dos nove estados nordestinos, totalizando 80 áreas produtivas. Os mercados institucionais, incluindo o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), estão entre os espaços previstos para a comercialização dessa produção, apesar de existirem obstáculos para isso.
O projeto é executado por 14 organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e faz parte do Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) – a partir de reivindicação antiga dos movimentos populares, presente na 7ª edição da Marcha das Margaridas, em 2023.
Muito presente na cultura de diversos povos, os quintais produtivos remetem à origem da agricultura. O cultivo de alimentos, ervas medicinais, outros vegetais e criação de animais nos quintais de casa caracterizam a base da promoção da segurança e soberania alimentar e nutricional (SSAN).
Buscando promover a “autonomia econômica das mulheres rurais e o auxílio ao acesso às políticas públicas de apoio à produção e comercialização”, o projeto pretende expandir a presença dos quintais produtivos no Brasil. A estimativa do governo federal é de atingir a marca de 92 mil propriedades em todo o país até 2026.
Desafios nas vendas aos mercados institucionais
Incentivar os quintais produtivos contribui com a diretriz do Pnae que determina a compra de alimentos da agricultura familiar, promovendo os circuitos curtos de produção e respeitando a cultura alimentar local. De acordo com a Lei do Pnae, essas compras devem responder por, no mínimo, 30% dos recursos federais do programa destinados aos estados e municípios.
Com foco específico na produção das mulheres, os Quintais das Margaridas promovem também a diretriz do programa que define a obrigatoriedade de grupos formais ou informais de mulheres representarem 50% dos titulares nas compras da agricultura familiar. Porém, são muitos os desafios para que essa produção de fato chegue aos pratos da alimentação escolar.
Ângela Souza Santos, de 22 anos, vive na comunidade Jatobá Beira Rio, em Pilão Arcado, município do Semiárido baiano. A agricultora é animadora do projeto Quintais das Margaridas e realiza vendas de alimentos ao Pnae desde 2022.
As vendas começaram apenas recentemente porque “muitas das comunidades não tinham esse conhecimento do edital, então [a informação] foi chegando com as organizações parceiras”, descreve. Entre essas organizações, se destacam prestadoras de assessoria técnica às comunidades.
A falta de informação não é a única barreira que encontraram no caminho. Diante de atrasos dos editais e pouca divulgação, agricultoras e agricultores da comunidade precisaram montar um “grupo de monitoramento” para acompanhar as chamadas públicas.
“O ano passado mesmo a gente teve que montar um grupo de monitoramento dos agricultores que fornecem para o Pnae, com a ajuda do Sasop (Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais). Tivemos que fazer monitoramento porque a gestão municipal não estava fazendo os pedidos”, relata.
Com os atrasos, muitos alimentos deixaram de ser vendidos. “A gente produzia, mas quando chegava o dia de fornecer, eles [governo municipal] não pegavam, nem emitiam as notas fiscais”, conta. “Fizemos só duas entregas. De um contrato que tinha R$ 17 mil [previstos em vendas], conseguimos fornecer só R$ 2 mil. Isso nos frustrou bastante e a gente começou a ver como estratégia montar o grupo de monitoramento do Pnae, para nos articularmos, nos organizarmos e conversarmos com os gestores do município”.
Como resultado dessa ação da comunidade, o acesso ao Pnae melhorou, “mas não é como a gente espera. Continuamos ‘no pé'”, diz Ângela. Porém, a partir da má experiência, “grupos de agricultores desistiram de fornecer para o Pnae, justamente por ficarem frustrados. E por ser muito burocrático”.
A assessora de sistemas alimentares da FIAN Brasil e assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Luana de Lima Cunha, enfatiza a importância da agricultura familiar para o Pnae.
“A agricultura familiar possui papel fundamental no abastecimento do Pnae, sendo os programas de compras públicas uma possibilidade efetiva de garantia de renda para agricultoras e agricultores familiares, e para a garantia de uma alimentação adequada e saudável nas escolas e instituições socioassistenciais – via PAA (Programa de Aquisição de Alimentos)”, pontua.
Os obstáculos descritos por Ângela não são uma exceção. Como contextualiza Luana, “a realidade é de dificuldades logísticas, procedimentos burocráticos que não reconhecem as especificidades locais, irregularidades nos pagamentos, ausência de abertura de chamadas públicas, insuficiente assistência técnica e extensão rural aos agricultores familiares”.
Recentemente o ÓAÊ, juntamente com mais de 50 organizações, pessoas e prefeituras municipais, lançou uma carta de recomendações ao poder público apresentando 23 medidas para garantir o acesso de agricultores familiares ao Pnae, sobretudo entre indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
“É fundamental que as gestões municipais e estaduais se comprometam e cumpram com o determinado pela legislação. Ainda se encontram muitas barreiras e desigualdades para o acesso, em especial das mulheres, indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais (PCTs), mas quando há diálogo e vontade política é possível encontrar soluções para adequar o acesso”, explica.
A assessora do ÓAÊ participou de uma das formações dos Quintais das Margaridas, que reuniu as animadoras de campo e coordenadoras das entidades executoras para estudar sobre Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN), agroecologia, gênero e feminismo, empoderamento e autonomia das mulheres, divisão justa do trabalho doméstico, coletivos, entre outros temas.
Para ela, o programa contribui para o avanço das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional ao promover a produção local de alimentos saudáveis, mas isso deve incluir a garantia de que essas mulheres terão acesso aos mercados institucionais.
“A participação e fortalecimento das mulheres nas compras públicas do Pnae é fundamental para o reconhecimento e valorização da cultura alimentar, das tradições e hábitos alimentares saudáveis. Sendo elas as grandes protetoras da diversidade produtiva, guardiãs de sementes, de conhecimentos e técnicas culinárias”, defende.
Entre os alimentos produzidos na comunidade em que Ângela vive estão hortaliças, como abóbora e pimentão, muitas outras variedades de verduras e legumes e a carne de caprino. Mas é no beneficiamento da mandioca que surge um dos principais alimentos fornecidos para a alimentação escolar, o biscoito de tapioca produzido pelo grupo de mulheres.
“Eu digo por experiência própria que a gente vivencia e produz o alimento de qualidade, então quando vem um projeto que reforça a dimensão e diversidade que a gente produz, é muito importante”, afirma.
A assessora de coordenação do programa Quintais da Margaridas, Maitê Maronhas, detalha que o objetivo da ação é “fortalecer as mulheres rurais, promovendo em todas as etapas do processo sua autonomia econômica, social e política, bem como a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional”.
A venda aos mercados institucionais será estimulada em várias etapas, junto à “elaboração, planejamento e execução de projetos produtivos para os quintais; articulação em grupos e organizações coletivas; acesso a políticas públicas de apoio à produção, com foco no consumo e na comercialização da produção através de circuitos curtos; e do acesso a políticas e programas públicos de alimentação e abastecimento”, ressalta Maitê.
Parte dessa produção das mulheres é trocada ou doada dentro das comunidades. Quando vendida, a comercialização é geralmente feita em feiras, mercados locais ou de porta em porta. Para ela, a dificuldade no acesso aos mercados institucionais é causada pela “falta de reconhecimento da agrobiodiversidade e a aceitação de produtos diversos, para além daqueles mais comumente encontrados no mercado convencional”.
Maitê defende a necessidade da “valorização da soberania alimentar, dos hábitos e culturas alimentares locais”. Ela aponta que o poder público e as instituições públicas de pesquisa “precisam colocar a soberania alimentar e a saúde da população acima dos interesses de grandes empresas”.
Visibilidade, autonomia e combate ao machismo
As mulheres são, na maioria das vezes, as responsáveis pelo cultivo e manutenção dos quintais produtivos. No entanto, isso é invisibilizado e o próprio valor econômico fruto do trabalho realizado não é reconhecido.
“A gente produz, produz, mas não vê como economia. Então, se eu produzo a hortaliça, se eu estou produzindo feijão, ou se eu crio animais, eu não vou precisar comprar fora. É um meio de economia e é uma troca também, às vezes, com a comunidade que gera troca solidária”, relata Ângela.
Com o projeto, a jovem passou a ver os quintais produtivos com outro olhar, apesar de sempre estarem presentes na sua vida. “Tenho a experiência por família. A gente trabalha muito com essa questão dos quintais produtivos, sempre trabalhou, mas agora eu estou como técnica”, conta. “A experiência familiar já vem há muito tempo. Isso vem da minha avó, de gerações passadas”.
Para ela, a iniciativa é uma oportunidade para o reconhecimento da produção das mulheres. “Eu vejo uma potencialidade muito grande nesse projeto, porque incentiva muito as mulheres. Já vivenciei isso com a minha família, porque minha mãe [quando foi sistematizar sua produção] falou assim, ‘meu Deus, eu não sabia que tinha tudo isso aqui no meu quintal’. Então, é um meio de despertar o trabalho dessas mulheres e de se reconhecerem também”.
Maitê explica que, entre as barreiras impostas pelo machismo às mulheres, a sobrecarga causada pela ausência de divisão do trabalho doméstico “retira delas tempo de participação nos espaços públicos e de decisão, tempo de trabalho produtivo e tempo de lazer”. Além da “violência contra a mulher, em todas as suas facetas, patrimonial, psicológica, física e outras”.
A jovem Ângela enfatiza o potencial do projeto para mudar a percepção que existe sobre o papel das mulheres nos territórios. “Nas comunidades tem essa questão do machismo, de que a mulher não faz nada, de que a mulher não tem um trabalho. Então, quando os Quintais das Margaridas chegam para provar que as mulheres atuam, que trabalham, que são elas que mantêm seus lares, é muito bacana e muito importante”, conta. “E eu estou muito feliz de estar nesse projeto”, conclui.