Por Maíra Miranda e Yuri Simeon
Da FIAN Brasil e do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) apresentou recomendações ao Governo Federal e Congresso Nacional defendendo o reajuste anual e permanente para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), além de medidas que assegurem o acesso de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais às compras públicas do Pnae e a inclusão da Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no material didático para formação de professores.
As medidas são resultado da 4ª plenária do Consea em 2024, que teve como pauta central o Pnae. As recomendações foram enviadas pela presidente do Consea, Elisabetta Recine, ao Ministério da Educação (MEC), ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ao Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e ao Congresso Nacional.
Reajuste do Pnae
Um dos desafios expostos durante o debate foi a insuficiência de recursos para assegurar uma alimentação saudável e adequada. Os debates foram estimulados pelo estudo do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) que analisa o enfraquecimento do orçamento do Pnae entre 2010 e 2024, diante de reajustes esporádicos sem a correção de valores considerando a inflação dos alimentos.
Somente entre 2014 e 2021, essa perda inflacionária foi de 34%. Como resultado disso, para voltar a ter em 2025 o poder de compra do programa em 2010, será necessário um reajuste de R$ 4,2 bilhões.
A partir disso, o Consea elaborou uma recomendação defendendo que se institua “uma regra permanente de reajuste anual dos valores per capita do PNAE, com base no IPCA Alimentação e Bebidas”.
A recomendação enviada ao ministro da Educação, Camilo Santana, ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, à ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, e ao presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, também propõe que o orçamento de 2025 incorpore as perdas inflacionárias entre 2010 a 2024, “resultando no aumento da dotação orçamentária atual de R$ 5,7 bilhões para R$ 9,9 bilhões”.
Desafios na execução das diretrizes
Muitos posicionamentos da plenária trouxeram para o debate desafios para a execução das diretrizes do Pnae. Para Mariana Santarelli, membro da coordenação da FIAN Brasil, é importante avaliar os avanços do Pnae em relação às disposições legais e sua implementação prática. “Apesar de termos normas muito boas e importantes resultados, há um grande descompasso entre a legislação e o mundo real da implementação e o que acaba sendo o prato dos estudantes”, observa.
Ela enfatiza os desafios enfrentados por povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais para vender seus alimentos às escolas públicas, e a insuficiência de iniciativas governamentais para adequar o programa às especificidades destes povos e enfrentar o racismo institucional em todas as esferas de governo.
Entre os temas debatidos, foram destaque o papel da alimentação escolar na garantia do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (Dhana), a construção de sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis, o enfrentamento ao racismo institucional, a participação social e o fortalecimento da educação alimentar e nutricional no ambiente escolar.
Este último resultou em um posicionamento do Conselho, recomendando ao MEC e ao FNDE a “aquisição de materiais didáticos de Educação Alimentar e Nutricional (EAN)” no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). O objetivo é a “formação de professores como forma de contribuir para a inclusão da EAN no currículo escolar e projetos políticos pedagógicos”, garantindo o que determina a legislação.
Uma das experiências apresentadas foi a do município de Belo Horizonte (MG), a gestão centralizada do programa permitiu um controle mais eficaz dos recursos, desde a elaboração do cardápio até a distribuição dos alimentos, relata Adilana Alcântara, gerente de alimentação escolar do município.
Um destaque é a participação de vários setores de governo e da sociedade, na formação de um comitê de compras da agricultura familiar, com a participação da EMATER e do SEBRAE, “como uma estratégia crucial para superar desafios logísticos e melhorar a aquisição de produtos da agricultura local”, explica.
A presidente do FNDE, Fernanda Pacobahyba, aponta a necessidade de aprimorar os sistemas de gestão do Pnae. Ela destaca a importância de dados concretos para fundamentar o debate social.
Na ocasião, Pacobahyba fez o anúncio do uso de uma nova ferramenta para o monitoramento, gestão e fiscalização dos recursos do Pnae utilizados na aquisição de alimentos, através da ferramenta BB Gestão Ágil, que se utilizará de inteligência artificial para sistematizar dados e informações relevantes para o monitoramento e controle social.
Apesar de experiências exitosas e o anúncio de novas tecnologias de gestão, foi reforçado no debate a necessidade da oferta de melhores condições para a participação da sociedade civil e o controle social. Indígena Pankaru e presidente do Conselho Estadual de Alimentação Escolar de Pernambuco, José da Cruz dos Santos aponta desafios como a falta de apoio e de autonomia para os Conselhos de Alimentação Escolar (CAEs) – “para que funcionem com transparência e real participação dos povos”.
“É bom que a gente comece a construir, divulgar, trazer a sociedade civil para participar com a comunidade escolar, entes federativos de controle social, para que a gente torne essa política pública coletiva”, defende.
Para ele, “é necessário uma maior flexibilidade para a aquisição de produtos locais, levando em consideração as adversidades logísticas enfrentadas para levar alimentos a comunidades indígenas de difícil acesso”.
Santos enfatiza a importância da compra local para assegurar a qualidade dos alimentos servidos nas escolas, evitando os danos causados pelo transporte em longos trajetos. “Não é interessante que o sertão produza coco e banana, mas as escolas dali recebam frutas da região metropolitana de Recife, que já chegam escurecidas e estragadas”.
Barreiras para a agricultura familiar
Débora Rodrigues, presidenta do Consea da Bahia, reforça as preocupações de José Cruz e se diz preocupada com o aumento de cooperativas de grande porte que fornecem alimentos para o Pnae nas escolas estaduais. “É importante priorizar a compra local, apoiando cooperativas menores e produtores locais”, salienta.
Ela aponta uma frequente preferência das Entidades Executoras (EEXs) por grandes cooperativas que oferecem produtos de outras regiões, como polpas e leite, devido à sua capacidade de fornecer grandes volumes com maior comodidade. No entanto, Débora criticou essa abordagem, alegando que ela negligencia a relação direta com pequenos agricultores e cooperativas locais.
Este é um alerta feito também por Mariana Santarelli, que apontou uma tendência de concentração das compras da agricultura familiar em grandes cooperativas, que muitas vezes são formadas por agricultores não-familiares.
Débora defende que o programa ajuste suas práticas para melhor apoiar e integrar a agricultura familiar na sua cadeia de fornecimento.”É recorrente a narrativa de que a agricultura familiar não consegue atender ao PNAE. Na verdade, o Pnae é que não se coloca à disposição da agricultura familiar”, diz.
Segundo a presidente do FNDE, “não dá para tratar o discurso de forma linear. O Brasil é muito grande e desigual. Em algumas regiões, a estrutura para cumprir os 30% está bem desenvolvida, enquanto em outras, parece que essa meta foi implementada recentemente e sem a devida preparação”.
Para a presidente do Consea, Elisabetta Recine, “a burocracia não está preparada para a diversidade, a burocracia quer uma linha reta e a vida e a realidade não são feitas de linhas retas”.
Entre as barreiras apresentadas por agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais a principal é a dificuldade em adaptar o Pnae às realidades locais. Segundo as falas, essa exclusão é gerada pelo racismo institucional, que não permite o reconhecimento e valorização da cultura alimentar local.
Eliete Cunha, representante da Associação de Pescadoras e Pescadores de Remanso, na Bahia, compartilhou alguns dos desafios enfrentados para incluir o pescado na alimentação escolar local. Segundo ela, “o processo foi marcado por grande resistência inicial, sendo necessário o diálogo com professoras, diretoras, nutricionistas e, especialmente, cozinheiras”.
Diante das dificuldades, a associação adotou uma abordagem prática: foi às escolas para ensinar a como preparar o pescado. Essa estratégia resultou em um avanço significativo, e atualmente, o pescado é requisito em todas as chamadas públicas do município de Remanso.
Além disso, foi necessário enfrentar um novo desafio, a obtenção do Cartão de Inscrição Municipal (CIM), certificação necessária para realizarem as vendas em Remanso. As pescadoras precisaram pressionar as autoridades e “ocuparam” a Secretaria de Agricultura, levando panelas e realizando um protesto pacífico.
Durante o protesto, elas exigiram a presença dos vereadores para discutir a necessidade do CIM. Colocaram placas e cartazes para chamar a atenção, e a ação atraiu a curiosidade de quem não estava familiarizado com a questão. Eliete destaca que, “apesar das dificuldades, a persistência da associação tem sido fundamental para garantir que o pescado da agricultura familiar seja valorizado e adquirido localmente”.
As pescadoras de Remanso chegaram a chegaram a entregar cerca de 5 mil quilos de peixe para a alimentação escolar por ano, mas recentemente as pescadoras descobriram que o filé de peixe está sendo adquirido de fornecedores externos, ao invés da compra local – contrariando as diretrizes do Pnae.
Outras barreiras para o fornecimento ao Pnae foram apresentadas por Jorge Henrique, agricultor do Quilombo São Miguel, em Maracaju (MS). Ele relata como o processo de inserção no programa trouxe à tona diversos desafios, incluindo a falta de equipamentos adequados e a necessidade de um diálogo constante com as cozinheiras para ajustar as demandas de produção. Além da escassez de água representar um grave obstáculo, afetando diretamente a produção agrícola.
Apesar dessas dificuldades, o Quilombo São Miguel tem demonstrado avanços, com inovação. Conseguindo fornecer alimentos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Pnae e também desenvolver estratégias para promover os produtos da comunidade quilombola.
A comunidade tem investido na divulgação de seus produtos como uma atração turística para visitantes da região de Maracaju. Jorge ressaltou a transformação da região, antes conhecida como “a terra da linguiça”, agora ganhando destaque como um centro de agricultura familiar. “A mudança de imagem reflete o crescimento e a importância da agricultura local na economia e cultura de Maracaju”, diz.
Como resposta às barreiras apresentadas, sobretudo àquelas relacionadas aos cadastros da agricultura familiar, o Consea destinou ao ministro do MDS, Wellington Dias, uma recomendação pedindo o “aperfeiçoamento do CadÚnico de modo que permita a identificação de todos os segmentos de povos e comunidades tradicionais”.
E pede que os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) sejam orientados a realizar “a devida marcação de pertencimento a povos e comunidades tradicionais das famílias no ato de sua inclusão ou atualização cadastral no CadÚnico”, com o objetivo de facilitar a utilização deste cadastro – via Número de Inscrição Social (NIS) – como alternativa para o acesso de agricultores familiares aos programas de aquisição de alimentos como o PAA e o Pnae.
Alerta sobre ameaças ao Pnae
Durante a plenária do Consea, um tema gerou alerta entre os participantes: um novo projeto de lei que propõe a revogação da Lei do Pnae. Trata-se do Projeto de Lei n° 3002, de 2024, da Senadora Janaína Farias (PT/CE).
O projeto propõe a criação de uma “Política Brasileira de Alimentação Escolar”, porém ao fazê-lo o projeto propõe a revogação de todos os artigos da Lei do Pnae, sem garantias de que os avanços já consolidados serão mantidos.
Como resultado do debate, a presidente do Consea enviou ofícios ao líder do Governo no Senado, senador Jaques Wagner, ao ministro da Educação e à presidente do FNDE, alertando sobre as ameaças identificadas e propondo um maior diálogo sobre o projeto de lei. “O Consea vê com preocupação a revogação de todos os artigos da Lei no 11.947, referentes ao PNAE, proposta pelo PL n° 3002/2024”, destacam os documentos.
“É preciso que a gente entenda de fato no que ele avança e se esses avanços são suficientes para colocar em risco as conquistas que temos hoje”, defende Mariana Santarelli, membro da FIAN Brasil e coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ). Ela alerta para os riscos relacionados a graves ameaças ao Pnae, com mais de 100 projetos de lei em tramitação no Congresso propondo alterações ao programa.
O alerta sobre os riscos desta tramitação e as recomendações do Consea relativas ao projeto de lei foram acolhidas pela presidência do FNDE, que desde então vem dialogando com o Conselho sobre a revisão desta proposta.