No momento em que a fome cresce a olhos vistos, pouco, ou quase nada fazem nossos governos para evitá-la. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado em dezembro de 2020, por iniciativa autônoma da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mostrou que no último trimestre do ano passado, menos da metade (44,8%) dos lares brasileiros tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar, isto é, com acesso pleno e permanente a alimentos, um aumento de 54% em relação a 2018. Mais alarmante ainda é que 19,1 milhões de brasileiros, ou 9% da população, estavam, no ano de 2020, em situação de insegurança alimentar grave, uma condição análoga à fome.
O auxílio emergencial foi interrompido de forma abrupta, e está sendo retomado tardiamente e com valor insuficiente. Não há solidariedade da sociedade e filantropia capazes de darem conta de tamanha fome. Por outro lado, nossos governantes têm nas mãos e vem gerindo de forma pouco comprometida o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), um dos mais importantes instrumentos para a promoção do direito humano à alimentação de crianças e adolescentes.
Logo no início da pandemia, mediante o fechamento das escolas, o Congresso Nacional autorizou governadores e prefeitos a utilizar o orçamento anual de R$ 4 bilhões do Pnae, para a distribuição de cestas de alimentos aos 41 milhões de estudantes das escolas públicas do ensino básico, o que foi uma importante vitória. Mas, o que aconteceu em grande parte do país, e se confirma com o olhar da missão de relatoria da Plataforma Dhesca sobre violações ao direito à alimentação escolar na pandemia de covid-19, foi uma distribuição insuficiente, irregular, e que não chegou a todos os estudantes, seja por falta de orçamento adicional ou ainda por falta de vontade política. Outro agravante foi a interrupção das compras da agricultura familiar, uma das grandes virtudes do Pnae, por sua capacidade de geração de renda, dinamização das economias locais, melhoria da qualidade nutricional e valorização da cultura alimentar regional.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar é uma das poucas políticas de segurança alimentar e nutricional que ainda seguem de pé frente ao grave desmonte feito nos últimos anos. É um dos poucos instrumentos que ainda temos para dar resposta ao aumento da fome, com alimentação de qualidade, comprada da agricultura familiar
O caso de Remanso, um município às margens do rio São Francisco, na Bahia, é emblemático. Em um período de 6 meses cada família recebeu apenas uma cesta, com uma quantidade muito pequena de alimentos não perecíveis. Em grande parte das escolas localizadas na zona rural, as cestas nem chegaram a ser distribuídas. A prefeitura optou por suspender os contratos de compra de agricultores(as) e pescadores(as) artesanais, comprometendo a renda de cooperativas formadas prioritariamente por mulheres que, ao longo de 2019, receberam a quantia de mais de R$ 630 mil com o fornecimento de alimentos saudáveis para o Pnae, e que em 2020 não receberam nada. Esta realidade se reproduz por todo o semiárido, a região mais pobre do país, e muito provavelmente por todo o Brasil.
Um levantamento realizado pelo FBSSAN (Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), em parceria com a Asa (Articulação do Semiárido) junto a 168 grupos produtivos de agricultores familiares e pescadores artesanais, apontou que 44% desses grupos, que até 2019 forneciam para o Pnae, deixaram de vender no ano de 2020.
O descaso não para por aí. Nas últimas semanas, através do Observatório da Alimentação Escolar, foi organizada uma ação de incidência para pressionar deputados federais a dizer não a dois projetos de lei (PL 3.292/2020 e PL 4.195/2012) que retiram a prioridade dada a comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos no fornecimento de alimentos ao Pnae, tornam obrigatória a oferta de carne suína, ao menos uma vez por semana, e criam reserva de mercado para o leite fluido, o que deixa a alimentação escolar vulnerável a todo tipo de lobby da indústria de alimentos.
Em tempos de crise humanitária, aumento do preço da comida, e redução do consumo de alimentos de origem animal, não é de se estranhar que frigoríficos e laticínios estejam de olho neste mercado gordo e certeiro de compras para a alimentação escolar, e que tenham seus interesses defendidos por lideranças do atual governo no congresso nacional. A tramitação do PL 3.292, proposto pelo deputado Major Vitor Hugo, líder do PSL na Câmara e um dos principais aliados de Jair Bolsonaro, está acontecendo de forma atropelada e arbitrária, ferindo acordos e regimentos internos, e sem espaço de diálogo com a sociedade. A tentativa de fazer com que as boiadas caibam no prato dos estudantes, em desrespeito às diretrizes do programa e até mesmo ao posicionamento oficial do FNDE/MEC (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) e do Mapa (Ministério da Agricultura e da Pecuária), é apenas mais um sinal da forma antidemocrática como este governo atende a interesses corporativos e de suas lideranças no congresso nacional.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar é uma das poucas políticas de segurança alimentar e nutricional que ainda seguem de pé frente ao grave desmonte feito nos últimos anos. É um dos poucos instrumentos que ainda temos para dar resposta ao aumento da fome, com alimentação de qualidade, comprada da agricultura familiar. Para a bancada do agronegócio é apenas mais um mercado para o escoamento de suas mercadorias.
*Artigo publicado originalmente no NEXO.