Terceirização no PNAE: riscos jurídicos e implicações para o cumprimento das diretrizes da alimentação escolar

Esse artigo tem o objetivo de refletir sobre os efeitos da terceirização na execução do PNAE e apresentar um monitoramento nacional longitudinal das Entidades Executoras que fazem esse tipo de gestão

5 de novembro de 2024 | Opinião

Por Daniela Bicalho¹ e Giorgia Russo²
Do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), originalmente publicado no Dossiê ÓAÊ 2023-2024: Diversidades e desigualdades na alimentação escolar

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma das principais políticas públicas do país destinada a promover Educação Alimentar e Nutricional (EAN), a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). A alimentação escolar é um dever do Estado e um direito de todos(as) os(as) estudantes da educação básica pública, garantido na Constituição Federal do Brasil.

Nesse sentido, a alimentação escolar cumpre um papel de proteção social, ao promover segurança alimentar e nutricional e contribuir com o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, na aprendizagem, no rendimento escolar, bem como colaborar na formação de práticas alimentares saudáveis, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as necessidades nutricionais dos(as) estudantes no período em que permanecem na escola.

Nesse tipo de gestão, a Entidade Executora (estados, municípios e Distrito Federal) contrata uma empresa especializada em alimentação escolar, por licitação, para a operacionalização parcial ou total do programa. Existem diversos tipos de terceirização: a empresa pode fornecer exclusivamente mão de obra e/ou também incluir serviços em geral, gêneros alimentícios, utensílios e equipamentos etc. O grau de terceirização interfere muito no resultado final. O PNAE é fiscalizado pelos Conselhos de Alimentação Escolar, pelo próprio FNDE e inclusive pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e Ministério Público (MP).

Esse artigo tem o objetivo de refletir sobre os efeitos da terceirização na execução do PNAE e apresentar um monitoramento nacional longitudinal das Entidades Executoras que fazem esse tipo de gestão.

Métodos

Primeiramente, foi realizada uma busca bibliográfica da literatura, nas principais bases científicas, dos trabalhos relacionados ao tema e uma busca de jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) que avaliasse esse modelo de gestão com os termos “PNAE e terceirização”. Foram identificados 120 acórdãos, sendo excluídos aqueles que não tratavam de Tomada de Contas Especial ou Auditorias. Na busca jurisprudencial no site do Superior Tribunal de Justiça, pesquisou-se os termos “PNAE e improbidade e terceirização”, localizando quatro decisões monocráticas.

Para a realização do monitoramento longitudinal das Entidades Executoras que adotam a gestão terceirizada, foram coletados os dados quantitativos secundários por acesso a bases de dados restritas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), via Lei de Acesso à Informação (LAI), proveniente do relatório de prestação de contas anual do Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SiGPC).

A pesquisa foi conduzida em todas as entidades executoras participantes do PNAE (estados e municípios que execu- tam o programa), garantindo a representatividade total. Para a seleção do período de análise dos dados, foram considerados os anos de 2015, 2020 e 2022, compreendendo o período pré, durante e após a situação emergencial da pandemia da COVID -19.

Todos os dados foram registrados e armazenados em planilha de Excel e o controle de qualidade dos dados coletados será realizado por meio de conferência dupla a fim de evitar erros. Para descrever a contratação de empresa para o fornecimento de refeições, será calculada a porcentagem média nacional, por região brasileira e por estado desse item em cada ano analisado. O TCU tem fiscalizado as entidades executoras que contratam esse tipo de serviço para a execução do PNAE e aponta uma série de irregularidades que também utilizamos para compor essa análise.

Resultados e Discussão

Este estudo realizou uma análise crítica problematizadora por meio de avaliação dos efeitos da terceirização total da alimentação escolar e apresentou um monitoramento nacional longitudinal das Entidades Executoras que fazem esse tipo de gestão.

Monitoramento da gestão terceirizada do PNAE

Participaram deste estudo todas as entidades executoras do PNAE que responderam, nos anos avaliados, ao questionário do relatório de prestação de contas anual do sistema do FNDE chamado SIGPC. O questionário nomeia essa modalidade como “contratação de empresa terceirizada para fornecimento da alimentação escolar”, não sendo possível distinguir entre terceirização de mão de obra ou terceirização total.

O percentual nacional de Entidades Executoras que realizam a contratação de empresa para o fornecimento de refeições nas escolas apresentou queda ao longo dos anos, especial- mente no período da pandemia da COVID-19, com pequeno aumento pós-pandemia (Gráfico 1).

A região Sudeste do país se destaca como a região com maior percentual de Entidades Executoras que operacionalizam o Programa com gestão do tipo terceirizada, especialmente os municípios dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo que, no ano de 2022, apresentaram 14% e 11%, respectivamente (Tabela 2).

Os dados do monitoramento das entidades executoras com gestão terceirizada da alimentação escolar revelam que uma a cada nove cidades do estado de São Paulo
fazem contratação de empresas terceirizadas para fornecimento de refeições nas escolas. Já no Rio de Janeiro, uma a cada cinco cidades do estado contrata empresa terceirizada para fornecer a alimentação escolar.

Análise crítica da terceirização

Muitas entidades executoras têm optado pela terceirização exclusiva da mão de obra. Alguns estudos apontam para consequências dessa terceirização como uma maior rotatividade dos(as) profissionais nos postos de trabalho, menor tempo de treinamento e menores salários, reforçando aspectos de precarização defendidos pelo campo da sociologia crítica do trabalho, que atrela a terceirização à baixa remuneração, à pouca qualificação e à alta rotatividade nos empregos.

Já a modalidade chamada de terceirização total, onde além da mão de obra, a empresa contratada também é responsável pelos serviços em geral como manutenção, aquisição e distribuição dos gêneros alimentícios, utensílios e equipamentos, etc tem as mesmas consequências de precarização do trabalho agravada pela dificuldade de garantia de qualidade das refeições servidas e cumprimento das diretrizes do PNAE.

Outro aspecto questionado refere-se ao fato de que a lógica de funcionamento de uma empresa privada, que tem objetivo de lucro, não segue a mesma lógica da administração pública, que tem como objetivo o interesse público, o que significaria um risco ao fornecimento de uma alimentação escolar adequada. Também se discute sobre como garantir a qualidade dos produtos entregues nas escolas e como atender aos 30% de recursos financeiros gastos com alimentos da agricultura familiar, conforme previsto em lei.

Poucos estudos acadêmicos analisam com profundidade esse modelo de gestão e, para compreender melhor as suas implicações, foram analisados dados de fiscalização publicados pelo TCU em seus Acórdãos. Esses documentos relatam as irregularidades da execução do PNAE em alguns estados com terceirização total. Esse material foi amplamente explorado para o presente estudo, por trazer todos os desafios dos modelos de gestão do PNAE de forma clara e objetiva.

O primeiro Acordão analisado foi o 314/2014, que fiscalizou a gestão no Estado de Santa Catarina, um dos primeiros da União a optar pela terceirização total.

Relatório da Auditoria n. 482/2011, realizada pela Secretaria de Controle Externo no Estado de Santa Catarina – Secex/SC, em 111 escolas em 38 municípios catarinenses, com o objetivo de conhecer a execução do programa de merenda escolar naquele estado da federação, ante a implantação do regime de terceirização no fornecimento das refeições, e identificar pontos para futura fiscalização, bem como avaliar a legalidade e legitimidade dos atos praticados na implantação do regime de terceirização no fornecimento das refeições desse Programa.

Seguem os principais achados desta auditoria:

  • Irregularidades em processo licitatório (Edital n. 26/2008), concernentes à licitação única para fornecimento de alimentos e prestação de serviços, sem o respectivo detalhamento de custos, com parcelamento em apenas quatro lotes, restando constatada restrição à competitividade do certame, bem como à falta de estabelecimento de um critério adequado de aceitabilidade de preços, com favorecimento à formação de cartel e inviabilização do cumprimento do art. 5º, § 2º, da Lei n. 11.947/2009;
  • Equipamentos que não foram disponibilizados consoante as especificações previstas em contrato;
  • Cardápios em discordância com o que havia sido previamente pactuado nos ajustes;
  • Deficiências no controle da execução dos contratos;
  • Alocação de profissionais em número inferior ao que tinha sido discriminado nas propostas das empresas contratadas, sem a correspondente redução no preço das refeições servidas;
  • Gêneros alimentícios fornecidos em desacordo com o detalhamento constante no orçamento contratado;
  • Indício de conluio entre as licitantes;
  • Descumprimento da aplicação dos recursos recebidos no que diz respeito ao mínimo 30% do total de gêneros alimentícios que deveria ser adquirido diretamente da Agricultura Familiar e do Empreendedor Rural ou de suas organizações.

O segundo acordão analisado foi o Acórdão 141/2017 – fiscalização realizada na Secretaria Estadual de
Educação do Espírito Santo, no período compreendido entre 16 de maio e 15 de julho de 2016. O modelo de gestão adotado pelo estado do Espírito Santo é o terceirizado, em que o estado contrata empresas para o preparo e o fornecimento de refeições aos(às) alunos(as) da Rede Estadual de Ensino, com fornecimento de insumos e mão de obra. Seguem os principais apontamentos relacionados a irregularidades na prestação do serviço:

  • Não separação da licitação de gênero e serviços;
  • Não acompanhamento do processo de licitação ou da chamada pública por parte do CAE;
  • Divergência entre a quantidade de refeições servidas e a lançada no Sistema de Alimentação Escolar.
    “Os lançamentos incorretos da quantidade de refeições servidas nas escolas ocasionam o pagamento maior às empresas contratadas”;
  • Não cumprimento pelas unidades escolares da previsão contida no Manual de avaliação dos serviços prestados pelas empresas contratadas.
    “Caberia à Gerência de Apoio Escolar (GAE) da Sedu/ES solicitar às unidades escolares trimestralmente a avaliação dos serviços prestados pelas empresas terceirizadas, assim como competiria às Superintendências Regionais de Educação realizar trimestralmente avaliação da gestão da contratada. Verifica-se o não cumprimento desta norma interna da Sedu/ES desde a sua edição, em 2014, resultando, portanto, na não avaliação dos serviços prestados pelas empresas terceirizadas por parte de quem é diretamente impactado por essa prestação de serviços, que são as unidades escolares”;
  • Divergência entre o. total de refeições efetivamente solicitadas pelos(as) alunos(as) e o quantitativo lançado no Sistema de Alimentação Escolar, evidenciando a falta de recursos humanos nas escolas para a realização dos controles manuais de contagem.
    “Fica evidenciada a falta de recursos humanos nas escolas para a realização dos controles manuais de contagem das refeições solicitadas.”;
  • Impossibilidade de validação dos valores utilizados do PNAE para pagamento de gêneros alimentícios.
    “o TCU constatou que a proporção de gêneros alimentícios estabelecida em cada proposta comercial não é mantida pela Sedu/ES quando do pagamento às contratadas. A inobservância dessa proporção tem resultado tanto no pagamento a maior de gêneros alimentícios, quanto no pagamento a menor de serviços, comparativamente ao que seria devido, havendo, portanto, o risco de se pagar o fornecimento de serviços das empresas com recursos federais, o que é proibido perante o disposto no art. 18 da Resolução – FNDE 26/2013.”;
  • Número de nutricionistas inadequado;
  • Cardápio em desacordo com as exigências da resolução vigente;
  • As condições de higiene e conservação da cozinha e do refeitório não são adequadas ao preparo e fornecimento da merenda escolar e o gênero alimentício utilizado para a sua elaboração é de baixa qualidade;
  • Não aplicação de testes de aceitabilidade;
  • Ausência nas escolas de ficha técnica detalhando a preparação das refeições previstas no cardápio;
  • Os equipamentos e utensílios não são suficientes e adequados ao preparo e fornecimento da merenda;
  • Não realização do mapeamento de produtos da agricultura familiar para execução da chamada pública;
  • A Entidade Executora não está observando o percentual mínimo de 30% do valor repassado do FNDE no âmbito do PNAE para a aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar;
  • Fornecimento de alimento com rótulo apagado e/ou ilegível, destituído de informações sobre a sua identificação, composição, valor nutricional e os
    respectivos prazos de fabricação e de validade.

O terceiro caso analisado é do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 1.366.379, sob a Relatoria do Min. Benedito Gonçalves, julgado em 23 de agosto de 2013. Esse acórdão manteve decisão monocrática do relator cassando o acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e determinou que fosse reexaminado o pedido de aplicação da medida de indisponibilidade dos bens, anteriormente indeferida, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa consistente em diversas irregularidades praticadas em processos de contratação e fornecimento de merenda escolar no Município de Castro/PR, com verbas em parte provenientes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no período de 2005 a 2010. Nesse caso, o modelo de gestão adotado também foi o de terceirização. Dentre as irregularidades apontadas pelos acórdãos do STJ e do TRF4, identifica-se:

  • Contratação emergencial de empresa com dispensa de licitação, sem realização de pesquisa de preços e nem demonstração da necessidade de terceirizar o serviço até então historicamente prestado pela própria Administração Direta;
  • Aceitação de modelo pronto de edital pela Comissão Permanente de Licitação com cláusulas que nitidamente frustraram a concorrência, reproduzindo fielmente trecho de edital de licitação também vencido pela primeira empresa terceirizada;
  • Ocorrência de superfaturamento no contrato emergencial conforme análise do Tribunal de Contas da União Sucessivas prorrogações e aditivos contratuais sem a realização de pesquisa de preços antes da prorrogação do contrato e inclusão na composição dos preços da demanda de refeições (supostamente causada por repetições de porções por certos alunos);
  • Rescisão amigável do contrato pela empresa terceirizada após inadimplência reiterada pelo Município de Castro/PR, seguida de nova contratação emergencial, mediante dispensa de licitação, de empresa com sede no mesmo endereço da anterior e contando com funcionários da empresa sucedida, levantando a suspeita de competitividade frustrada das licitações desde 2005 visando manter o fornecimento da merenda escolar nas mãos do cartel liderado por essa empresa;
  • Diminuição da quantidade de alimentos fornecidos e piora na qualidade desses alimentos durante todo o processo de terceirização do fornecimento da alimentação escolar;
  • Redução da autonomia do Conselho de Alimentação Escolar devido às intervenções frequentes nas reuniões pelo Secretário Municipal de Educação.

Conclusão

Este estudo apresentou um monitoramento nacional das Entidades Executoras que operacionalizam a alimentação escolar com a gestão do tipo terceirizada, com destaque para os principais desafios enfrentados para a execução do programa nesse tipo de gestão.

O modelo de terceirização total está previsto na Resolução 6/2020 do FNDE e em alguns materiais do TCU (Conselheiros do PNAE). No entanto, e acordo com os apontamentos do TCU, observou-se que esse modelo de gestão não soluciona as principais falhas na gestão do PNAE e ainda são encontradas outras irregularidades inerentes a esse modelo, como a dificuldade de controle na gestão do contrato, a garantia da qualidade dos gêneros alimentícios adquiridos, o não cumprimento do cardápio e compras da agricultura familiar.

Por fim, destacamos a relevância deste trabalho para a formulação de políticas públicas de alimentação escolar no Brasil e para a promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável e da segurança alimentar e nutricional no país. Reafirmamos a necessidade de mais estudos científicos que apurem a eficácia desse modelo de gestão.

¹ Daniela Bicalho é doutora e mestra em Ciências pelo programa de Nutrição e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP). Especialização em Nutrição Pediátrica e Escolar. Especialização em Vigilância Sanitária dos Alimentos. Nutricionista.
² Giorgia Castilho Russo é nutricionista e mestra em Ciências pelo programa de Nutrição e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP). Especialização em obesidade e patologias associadas. Consultora técnica Idec (Instituto de Defesa de Consumidores). Presidente da Comissão Gestora da Lei de Orgânicos na Alimentação Escolar de São Paulo. Nutricionista do Comitê da Criança e do Adolescente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. 20 anos de atuação em políticas públicas de alimentação escolar.

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